sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Grand-mère,

Bolinhos de chuva, leite com chocolate, Chavez e, ocasionalmente, Chiquititas também. Havia ainda certa mesa de centro de tampo de vidro e pernas de madeira maciça, lustrosa, que me serviu de palco para muitas brincadeiras de Lego e construções com massinha. Quebra-cabeças de 50 peças. Passatempos simples em tardes preguiçosas, uma infância inteira, marcada na memória à canetinha Faber-Castell.

Não, espere, volte algumas palavras. Há um porém escondido, o clássico impasse. Acontece que, como toda infante, tinha também uma boa porção daqueles tais prazeres secretos – repensando agora, quase obsessões – que não me permitem chamar a infância de simples. Pois sempre que minha avó terminasse com a limpeza da cozinha ou qualquer outro trabalho de costura que poderia ter, logo sentava no sofá, com um suspiro longo e costumeiro: “Ai ai, meu pai” diria, coçando o topo da cabeça com as duas mãos. E assim que terminasse, eu, sorrateira e discreta, aninharia a cabeça em sua coxa, entregando-lhe um livro. Ela, com um esboço de sorriso, o pegaria forte com as duas mãos “O que teremos hoje? Ruth Rocha, hm, interessante...”

Perdia-se na história, mais do que eu, inspirada pelas ilustrações coloridas. Inventava novos tons, forjava novas vozes, balançava os braços compenetrada em sua atuação. Permitia-se à fantasia, dava-se à liberdade que era contar histórias. E eu, ouvinte atenta, segura e confortavelmente acolhida em seu colo ancião, acompanhava-a para onde quer que fosse, perdidamente apaixonada por todas as inúmeras personagens a que minha avó de repente se tornava.

Mas então, por ordens do destino, aprendi eu mesma a ler. Frenesi, verdadeira liberdade. Agora assim sabia o que era felicidade.

A leitura vagarosa, sílabas cantadas, uma por vez, a frase que se alongava em cacoetes e engasgos, até perder completamente o seu sentido. Agora eu também podia fazer a história no meu ritmo, reinventar personagens ao meu próprio tom. Personificação mais fraca e envergonhada do que a de minha avó, claro. Um novo eu. Outro eu. Mais um eu.

Tenho guardados até hoje, com carinho e orelhas amassadas, os meus grandes clássicos: O Pequeno Nicolau, estrategicamente colocado bem no meio da prateleira; Pollyana, com as últimas páginas ainda manchadas pelas primeiras lágrimas que verti sobre um livro; Matilda, constantemente me lembrando do prazer que me tomou ao comprá-lo, o primeiro livro de minha própria mesada.

Li, li quase tudo o que chegou às minhas mãos. Amei, chorei, sorri – até que passei a criar também. E mais tarde, quando a vida me pediu para escolher entre fazer ou assistir, escolhi continuar a escrever apenas. E de vez em quando ainda entrego meus rabiscos para a minha avó, só para poder, após ajeitar-me confortavelmente em seu colo, ouvi-la contar as minhas histórias com aquele seu antigo vigor apaixonado – já quase característico. 
 
(Crônica ganhadora do 1º lugar no VII Concurso Literário do Colégio Rainha da Paz - em homenagem à minha querida vovó.)

Wednesday, May 15th /Quarta-feira, 15 de maio

(Outra crônica ganhadora do 1º lugar do VII Concurso Literário do Colégio Rainha da Paz, na categoria Lingua Inglesa. Abaixo está a original e, logo depois, a tradução feita por mim mesma)
Wednesday, May 15th
It was the middle of a lazy afternoon. The mother working in a piece of article sitting at the balcony’s old-wooden table, while her fifth-year-old lied on the grass, belly up. The little one was humming. Suddenly, she speaks: “Mom, what’s the sky?”

“What about it, hon?” the mother replies, still staring at the green computer screen. “What is it made of?” Now the mother glances at the child, so innocently lying a few feet from her; she didn’t know what to answer. “Well, I don’t know sweetie, just emptiness I guess.” The little girl twitches her nose. “You lie… How can something be made of nothing?” The mother breathes deeply “my baby” she says “I’d never lie to you. I just don’t really know the answer…”

“Oh” replies the unsatisfied daughter. “But why is it so high above?”

“Because if it wasn’t, it would crush our heads and we’d have headaches all the time, and that wouldn’t be nice, would it?” Mom says, resuming the typing. The girl looks at her, intrigued “but you have headaches all the time, momma, even with the sky high above…”

“Oh, that’s because my headaches are special.” The kid keeps thinking about it, almost forming an idea in her little, childish mind. “Mommy, do you have headaches because I jump on the sofa, even when you tell me not to?” She had a guilty tone in her voice; it made the mother kind of sad. Again, she didn’t know what to answer. “No, baby, not exactly.” The girl was kind of relieved. And so, kept talking: “Mum, did you know that clouds aren’t really made of cotton candy, but actually, of whipped cream, just like the one on grandma’s birthday cake?” The answer she got was automatic, almost distant and cold “Oh, really honey, didn’t know about that…”

There was a little time of steady silence, a couple of birds singing and the mother tipping, vividly, unquestionably in love with what she was doing. It was true catharsis, suddenly she was far away. But a thin voice brought her back: “Mommy, why does the cow go ‘moo’?”

“Don’t know honey. Ask grandpa, he’s a vet.” The girl, disappointed, lifts her arms to try to catch a butterfly that passed lingering by. “Okay” and after a few seconds “when will we see grandpa again?”

“Next weekend, I think.”

“Days, momma, how many days?” The little girl just couldn’t understand why everybody kept talking about weekends and things that she didn’t understand. The mother stopped tipping to count the days “Four days, three nights”, she concluded, and now couldn’t remember what the idea she’d been writing was, and erased the whole sentence.

Not forgetting about the moment that had just passed, the infant continued with the conversation. “Mom, are butterflies made of butter?” A smile shows itself, discrete, on the mother’s face. “I guess not, baby, otherwise it would melt under the sun.” The girl takes a second to think about it: “Oh, yeah” is her conclusion. Contempt with the answer, she continues “I’ve to tell this to my teacher at school, than, because he said that butterflies are made of butter and that spaghetti are actually white warms…” Now, mother stops tipping, frightened, staring at the little infant. “Did he really, baby?” The girl laughs, “Nah, just kidding.” The mother breathed with relieve.

The child resumes humming, moving the arms out and about, as if she was floating. Suddenly, silence. And then a known voice breaks it: “Momma, can grandpa give me a puppy? If he’s a vet he must have lost of them” The mother kind of laughs. “Actually, darling, grandpa only takes care of other people’s dogs. And we’ve talked about this, remember, your daddy is allergic to puppies.” That was not really true, but it was the first thing they could invent – after all, the baby girl didn’t even know what “allergy” meant. “Oh, yeah, I remember… Can I have some chocolate cake, then?” So innocent.

“Of course you can, my baby. Ask your dad, he’s inside. And wash those hands first…” Now the mother was yelling, as the girl was already inside. Bare foot, clothes filthy with mud and dust, she’d walked in as vividly as a five-year-old child should always walk. So curious and grown-up, but yet so little and fragile.

The girl was now eating the piece of cake sitting at the father’s lap, without having washed the hands, and not even imagining that, on a few years, she wouldn’t remember the precise taste of that chocolate cake, nor the feeling of the grass on the naked legs, but would always carry the idea of a blue, gigantic sky, made out of nothing and whipped cream clouds.


 Quarta-feira, 15 de maio
Era uma tarde preguiçosa. A mãe trabalhava em algum artigo, sentada na varanda, na mesa de madeira velha, enquanto sua filha de cinco anos deitava na grama, barriga para cima. A pequena cantarolava alguma coisa. De repente, ela fala: “Mamãe, e o céu?”

“O que que tem, querida?” a mãe responde, ainda encarando a tela do computador. “Do que que ele é feito?...” Agora a mãe olha à filha, tão inocentemente deitada na grama; ela não sabia o que lhe responder. “Ai, querida, eu não sei... Só de vazio, eu acho.” A criança faz uma careta “Você mente... Como pode alguma coisa ser feita de vazio?!” A mãe suspira “meu bem” ela diz “eu nunca mentiria para você! Eu só não sei a resposta...”

“Ah...” responde a pequena, insatisfeita. “Mas por que ele fica tão lá em cima?”

“Bom, porque se não fosse, iria esmagar as nossas cabeças e a gente ia ter dor de cabeça o tempo todo, e isso não seria legal, não é?” A mãe diz, voltando a digitar. A menina a observa, intrigada “mas você tem dor de cabeça o tempo todo, mamãe, mesmo com o céu tão lá em cima.”

“Ah, mas isso é porque as minhas dores de cabeça são especiais...” A criança continua pensando sobre o assunto, quase formando uma ideia na sua cabecinha “Ô mãe, você tem dor de cabeça por que eu pulo no sofá mesmo quando você me diz que não é pra eu fazer isso?” Ela tinha um tom um tanto culpado na voz; a mãe sentiu-se um pouco triste. De novo, ela não tinha respostas. “Não, querida, não exatamente.” A pequena ficou aliviada, e por isso, continuou a conversa “Mãe, você sabia que as nuvens não são feitas de algodão doce, mas, na verdade, de chantilly, que nem aquele do bolo de aniversário da vovó?” A resposta que ela recebeu foi automática, quase distante “É mesmo querida, não sabia disso...”

Houve um breve momento de silêncio. Um casal de pássaros cantava e a mãe digitava, energética, completamente apaixonada por aquilo que fazia. Catarse, de repente estava bem longe dali – então uma voz a trouxe de volta: “Mamãe, por que que a vaca faz ‘muu’”

“Não sei, meu amor. Pergunta pro seu avô, ele que é o veterinário.” A criança, desapontada, levanta os dois braços para tentar pegar uma borboleta que passou flutuando por ali. “Tá bom” e depois de alguns segundos “quando é que a gente vai ver o vovô de novo?”

“No próximo final de semana, eu acho”

“Dias, manhê, quantos dias?” A garota não conseguia entender por que todo mundo insistia em falar sobre finais de semana e outras coisas que ela não conhecia. A mãe parou de digitar para contar os dias: “quatro dias, três noites”, ela concluiu, e já não lembrava mais o que havia começado a escrever.

Ainda lembrando aquilo que havia acabado de acontecer, a pequena continuou “mamãe, as borboletas são feitas de manteiga? ”Um sorriso se mostra, discreto, no rosto da mãe “Acho que não, amor, se não elas derreteriam no sol!” A menina pensa um pouquinho “Ah é, verdade...” Satisfeita com a resposta, ela conta: “Eu tenho que contar isso pro meu professor na minha escola então, porque foi ele que me disse que as borboletas são feitas de manteiga e que spaguetti, na verdade, é minhoca.” A mãe para de digitar e, aterrorizada, encara a filha “ele disse isso mesmo, querida?” A menina gargalha “Não, não, tava só brincando!...” A mãe suspira aliviada.

A pequena voltou a cantarolar, balançando os braços como se estivesse flutuando. Breve silêncio – logo, uma voz conhecida o quebra: “Mamãe, o vovô pode me dar um cachorrinho? Se ele é veterinário, ele tem que ter um monte deles!” A mãe meio que ri. “Na verdade, meu amor, o vovô não tem nenhum cachorro, ele só cuida dos cachorros dos outros... E a gente já falou sobre isso, lembra?, você não pode ter um cachorro porque o seu pai é alérgico.” Isso já não era verdade, mas foi a primeira coisa que eles conseguiram inventar – afinal, a pequena nem sabia o que era alergia. “Ah é, eu lembro disso... Posso comer um pedaço de bolo de chocolate, então?”

“Claro que pode, amorzinho. Pede pro seu pai te ajudar. E lava essas mãos antes!...” Agora a mãe gritava, pois a menina já havia entrado. Descalça, roupas manchadas de lama e poeira, ela andava tão segura quanto uma criança de cinco anos devia sempre andar. Curiosa e crescida, mas ao mesmo tempo pequena e frágil.

Ela já comia o seu bolo de chocolate sentada no colo do pai, sem ter lavado as suas mãos, e sem nem imaginar que, dali alguns anos, ela não iria se lembrar do gosto exato daquele bolo, nem da sensação da grama nas suas perninhas nuas – mas sempre carregaria na memória a imagem de um enorme céu azul feito de vazio e nuvens de chantilly.

sábado, 23 de outubro de 2010

Chora porque...

Chora porque pela cabeça passa em câmera lenta as memórias preto-e-branco de anos e anos de vida, que lhe dão saudade e um aperto no peito.
Chora porque sabe que tem experiência, que já esteve naquele lugar várias vezes antes.
Chora porque, mesmo com tanta experiência, ainda fica com as mãos geladas e a garganta seca, como se tudo fosse mesmo novidade. 
Chora porque os músculos -principalmente os das pernas- queimam com o alívio e satisfação de saber que tudo correu como o planejado.
Chora porque o coração lhe dita com palavras coloridas a história do caminho que correu -as inúmeras tardes e manhãs em que, sempre com suas sapatilhas, viveu seus maiores sonhos.
Chora porque a imagem que vê é linda, vista de cima de um palco oco de madeira, praticamente um lar
Chora porque dançara, porque se fantasiara e se preparara para dançar, então fora prestigiada e depois ainda, aplaudida. 
Chora porque sente um enorme e verdadeiro afeto por aquelas pessoas que estão ao seu lado, apertando-lhe as mãos. Chora porque sabe que aquilo que sente é, na verdade, uma mistura adocicada de amor com orgulho, de alívio e satisfação.
Chora porque convém -já que todo coração tem limite.
Chora porque está muito feliz.