domingo, 30 de janeiro de 2011

#1


A manhã poderia ter começado melhor. O sol poderia ter brilhado mais forte, os passarinhos poderiam ter cantado mais alto e o céu de aquarela poderia estar meio tom mais anil. Mas ignorando as possibilidades que não se fizeram, tudo estava ótimo. 

E pondo-se na rua, calcanhares no asfalto, andava com um propósito. Não é que tinha pressa, mas certa expectativa crescia no peito, mais e mais, e por isso ofegava. 

O que fazer agora que, finda a caminhada, não havia ninguém ao seu lado? Não quem esperava, pelo menos. A solidão inesperada lhe causava constrangimento, olhava ao redor, olhos ofendidos, só para ter certeza do que – não – via. Pôs-se a esperar, já que não havia mais o que fazer. Sentou-se na sombra, as pernas balançavam, uma garrafa de água gelava os dedos. 

Com um resto de esperança ainda pelo corpo, suportava o tempo que parecia não passar, a espera do futuro próximo e – certamente – alegre. Mas o presente parecia interminável, alongava-se tanto que nem se podia tocar com as mãos. E os instantes congelavam-se apesar do calor, provocantes. 

Olhava o relógio com aflição, os ponteiros que pareciam andar para trás. Passou uma pessoa, mas não era bem quem esperava. Afligia-se. Quase uma hora de espera, a decepção já começara a destruir todo o pouco de esperança que sobrara. Quanta vergonha, ardia quase tão forte quanto o sol. Doía-lhe. Respirou fundo, meio que restaurou a dignidade. Dispôs-se a esquecer o episódio, sabia que seria melhor, arqueou as sobrancelhas para parecer que estava ali de propósito. 

Caminhava de volta já, sem pressa mas com uma enorme cicatriz. Respirava a brisa que vinha farfalhando por entre as árvores de giz pastel. Sim, a manhã poderia ter sido bem melhor...

domingo, 23 de janeiro de 2011

Nota:

A meia-luz do começo da noite é tão desesperadora. É um tal ver-sem-enxergar grave que amedronta e confunde e faz com que até as bocas mais caladas suspirem a dúvida: vai ser assim para sempre?

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

O susto

A tarde sublime do lado de fora, a alma satisfeita do lado de dentro. Os olhos brilhando e o coração em um ritmo delicioso.
Mas o momento se desfaz. Algo muda, a brisa corre com outra quentura. Tudo atravessa um segundo. A porta se fecha com o vento, a janela estremece, o mosquito pousa na pele macia.
Quando se percebe, a vida continua em plena harmonia. Lá fora o fim da tarde doura o céu, aqui dentro a felicidade reina, sempre.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Amor perfeito

A tarde hesita do lado de fora da casa. O sol domina a tarde, as árvores balançam com uma brisa que não me alcança, as sombras derretidas se deitam nas calçadas. Aqui dentro, o silêncio estrondoso perturba a ordem de meus pensamentos. A tua ausência basta para enlouquecer-me. E logo se forma diante da vista um manto de poeira e solidão. Cega-me. Entope o coração e inunda a alma de mágoas solidificadas. Pesa-me. E então sufoca-me. Mas logo me curo, assim que vejo seu corpo esguio passar pelo portão enferrujado. 

Afaga o cachorro, liga a tv. Olha-me com estes teus olhos sombrios: pena e afeto. Acalenta meus medos com apenas esse toque de simpatia e alecrim. Compreende meus defeitos - eu sei, aceita as imperfeições deste corpo e desta alma. Então fala-me. Tons graves e reais; recheiam a casa e a vida de significados. 

Olha-me de novo. Toca-me de novo, a mão quente em meu corpo vazio. Ama-me de novo. Amor calado, pesado, bem sei, pois tem em seu rosto aquela harmonia sóbria de quem sente o que é desumano e desmedido. 
Logo ama-me tanto que me pesa no pulmão uma névoa branca-quase-suja. Sufoca-me. Enlouquecida, evito seu olhar, seu cheiro, seu estar comigo. 

Percebe-me e ofende-se. Abandona-me discretamente. De novo, tua ausência infesta o ar e azeda a existência. Chamo, suplicante, arrependida. 

Atende-me. Volta e me olha, minhas cores e meus tons. Perdoa-me, e por amar-me, logo me deixa estar de novo na minha irrealidade.