Tinha grandes dentes tortos e cílios tão grandes que até faziam sombras em suas bochechas; estas, por sua vez, eram também muito demarcadas. Sorria com facilidade, mas evitava dar risada, pois sabia o quão irritante a sua voz podia ser. Porém, quando lhe era completamente inevitável, e uma gargalhada se formava no fundo da garganta, ria como um babuíno febril, expondo as grandes gengivas rosadas e os dentes amarelos pontudos.
E assim existia. E também vivia, afinal não há existir apropriado sem nenhuma forte chama vivaz hesitando em algum lugar da alma – porém, nela a tal vida queimava escondida, debaixo de sua pele, longe da vista do mundo. E por viver apenas, sabia que não devia exigir nada dos outros – nem amor, nem ódio, nem pena. Um simples olhar de reconhecimento de sua existência, mesmo de longe e de leve, já lhe era o bastante.
Mas, vai perceber que neste momento sobre o qual lhe falo, ela não se importava muito em existir. Pois já era fim de tarde, e tudo lhe parecia um pouco embaçado. Estava no ônibus, voltando para casa, apertada entre homens e mulheres que não pareciam se preocupar muito com a sua presença, e insistiam em pisar-lhe no pé ou tossir em sua orelha. Calma, como sempre, suportava tudo aquilo e perdoava-os, pensando que eles também deveriam estar tão cansados quanto ela.
Ouviu-se alguém dar o sinal para descer, o motorista logo percebeu e aproximou-se o máximo possível do ponto. Duas pessoas desceram, sete subiram. Houve uma rápida movimentação de braços e apertos, apenas de acordo com possível, e logo mais o ônibus voltou ao sofrível movimento. Pena foi que precisou frear quase que imediatamente, por causa de um certo carro que resolveu cruzar-lhe pela direita. A freada foi brusca, e o som das buzinas durou ainda alguns segundos, ressoando pelos ouvidos. Desequilibrados, alguns pisaram em falso, e outros deixaram suas mãos escorregar de seus apoios, tendo que se apoiar em quem fosse que estivesse por perto. Ela, porém, não desequilibrou ou mexeu um dedo sequer, mas levada por uma avalanche desenfreada, foi esmagada contra um assento, batendo a sua cabeça em um cano de apoio. Foi consideravelmente forte, tanto que ainda ficou um pouco desnorteada. Sozinha, sem receber nem a mínima consideração de qualquer um daqueles ao seu redor, recuperou-se forçadamente e, agora já violentamente, abriu o seu caminho para a porta.
Acontece que havia se cansado. E já não querendo mais nada daquilo, desceria do ônibus e continuaria seu caminho a pé e – principalmente – sozinha. E assim o fez: assim que conseguiu alcançar a porta, todos ouviram desatentos à sua vontade de ir embora. No quarteirão seguinte, o ônibus parou e escancarou-se, enquanto ela descia em pulos atrapalhados.
No ponto, sozinha, viu-o ir embora. Até o acompanhou com os olhos, não que isso tenha qualquer significado magnífico. Olhou para a rua que logo mais deveria seguir; estava a mais de cinco quarteirões de sua casa, mas não se importava – só se importava em respirar aquela liberdade que sentia agora. E, só para afirma-se mais um pouquinho com a nova sensação, espreguiçou-se demoradamente, com os braços bem alongados ao léu, alongou o pescoço, e então colocou as mãos no bolso, pois estas estavam tão estranhamente livres que mal sabiam o que fazer.
Caminhava então, passo a passo, sozinha. Olhou para uma ruela e pensou que, se assim quisesse, poderia segui-la - mas como simplesmente não queria, seguiu adiante. Era-lhe tão novo que quase embriagante. Gostava daquilo, daquela sua liberdade recém encontrada, que a permitia até respirar no ritmo que bem quisesse. Sentia-se satisfeita. E assim, mas talvez só assim, era feliz.
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Mário Quintana