Desde que o tempo é tempo, almoço na casa da minha avó aos sábados. Não todos, a cada quinze dias na verdade, mas fixou-se em uma rotina tão fortemente, que quando precisam acontecer num domingo, acabam se tornando um verdadeiro transtorno moral. Esta rotina já é passada, conhecida há muito. Acordava cedo, chacoalhada pelo gentil toque de meu pai, e ainda meio inconscientes, colocávamo-nos todos na estrada. Os olhos meio abertos observavam a paisagem urbana, sem qualquer interesse. Passava-se o aeroporto, a loja de piscinas engraçadas, o túnel e pronto – a parte mais emocionante de toda a viagem.
Três altos morros seguidos, ladeiras íngremes que quando passeadas em alta velocidade traziam aflição ao estômago medroso. Margeados por sobrados decadentes, vilas escondidas por entre longos quarteirões, pinturas manchadas e pichações obscenas nas paredes encardidas. Carros sem rodas ou com vidros quebrados, crianças andando pelas calçadas quebradas com roupas sujas e chinelos finos. É a imagem de minha infância.
E ainda me lembro das cócegas delicadas que percorriam meu pequeno corpo quando, de repente, um semáforo prendeu-nos no meio da descida. Engolida pela distração da alta música do meu próprio disk-man, senti forte o tranco da freada. E ao passear os olhos vagos pela paisagem ao meu lado, encontrei algo que me prendeu a vista boba por alguns momentos confusos.
Abro aqui um parêntesis para esclarecer-lhe: sempre fui menina tão superficial que qualquer toque mais intenso que o acostumado pela fina pele fria, faz com que cresça pela espinha um arrepio intenso e martela ideias na insensata cabeça, fazendo de todo pequeno suspiro um importante momento na vida. Certo, fecho o parêntesis.
Sentado quase como um fantasma estava ele, na quina de um muro branco de uma casa de esquina. Com certeza era mais velho que eu, podia-se ver pelo corpo comprido e magrelo – se bem que mergulhada em meus oito anos, qualquer um parecia mais velho que eu. Uma perna se escondia dentro do muro, a outra balançava no lado de fora, pendurando uma havaiana azul surrada, sua camisa esgarçada mal cobria os seus ombros.
Vi que olhava em meus olhos. Ignorava completamente as feições incertas e sonolentas, curioso. O carro andava em soquinhos, mas continuava sustentando os olhos sérios nos meus, confusos. Inocente como era, duvidei ainda se olhava realmente para mim. Afinal, por quê?
Louca por provas, sedenta de confirmação, nervosa com o carro que descia aos poucos retardando a despedia mas alongando as oportunidades de descobrimento e afirmação, encontrei na minha alma infantil demais uma pequena solução: mostrei-lhe a língua. No canto da boca, lábios entreabertos discretamente, apenas uma pequena parte. Quase imediatamente, a resposta: mostrou-me a língua também, uma cópia idêntica de meu movimento bobo.
Correu pela minha cabeça uma grande quantidade de sangue quente. Senti as bochechas enrubescerem. Olhei automaticamente para o meu pai, no volante. E se tivesse me visto, naquele momento atrevido, ações inexplicáveis? O que faria? O que diria minha irmã se visse minhas bochechas vermelhas e os olhos arregalados com a surpresa da resposta. Como explicar-lhe por que havia havido uma resposta? Formigava-me o esôfago, sentia que suava e o coração acelerado fazia pulsar ainda mais forte a veia verde do pescoço. Não, não lhe exagero em nada, tenho certeza que foi isso mesmo o que se passou dentro de mim. Formigavam, acelerados. Respondera-me, mostrara-me a língua. O que significava, meu Deus, aquele menino me encarar daquela forma e então responder de forma tão clara e direta a minha – repito, minha – ação para o descobrimento e confirmação de uma intuição qualquer. Sabia, talvez, o que eu quis dizer? Padecia ele das mesmas sensações? Talvez se fizesse outra coisa, estabelecesse contato mais uma vez, talvez assim pudesse encontrar alguma resposta. Olhei para ele de novo. Ria-se, bem alto, uma gargalhada cujo som não chegava aos meus ouvidos, mas que se desenhava no céu azul em formas agudas, os pés flexionados feito de um pato, o chinelo preso entre os dedos sujos balançava capengo. Ria-se de mim.
Por quê? questionei-me durante anos.
Nunca saberei, claro. Pois o carro passou a movimentar-se de verdade agora, meu pai e minha irmã absorvidos em alguma longa conversa nem haviam reparado na vermelhidão de meu rosto e na mágoa que transparecia em meus olhos. Ria-se, por quê? Nunca saberei. No alto do morro seguinte, cócegas novas já me perturbavam, alheias a qualquer transformação na forma de serem sentidas. Mas posso garantir-lhe que havia mudado, com certeza.
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Mário Quintana