quinta-feira, 29 de abril de 2010

Ah, breve insensatez


E o que sentia então, era aquilo real? Os carros que passavam à sua frente, a toda velocidade, todos eles de fato existiam? Pois por um segundo, se fechasse os olhos levemente, se encontraria de novo sozinha, perdida em si, tonta com o zumbido forte da vida ao seu redor. A maré viria, sabia bem. Logo no horizonte, a paisagem verde e montanhosa se desmanchava, como uma pintura que derrete. Correra, sentira abaixo de seus pés o asfalto quente e incerto que poderia traí-la a qualquer momento. Acima de sua cabeça, conseguia ver, milhares de quilômetros de ar. Puro ar, e nada mais.

Sabia, ao olhar o farol fechado, que aquele era o seu momento de andar - suas pernas, porém, já haviam desistido de responder aos seus estímulos confusos - até mesmo o seu corpo a abandonava de vez em quando. Estava acostumada com essa sensação. Olhava para os lados, esperando com que os carros avançassem - talvez para cima dela, por que não? - desesperadamente esperando desculpas para ficar parada naquela esquina por mais algum tempinho. Sua mente se esvaziava. De novo, um despertar de seu coração a avisava que a maré logo mais chegaria.

Em suas mãos não cabia mais o tempo que desperdiçou procurando a vida simples. Seus braços fraquejavam, pareciam pesar toneladas, pendurados de seus ombros já arquejados com a culpa e o desanimo do mundo. Sentiu um buraco abrir-se bem na altura de seu peito, de dentro para fora, todas as suas dores em uma explosão que não pode ser contida. Chamou-a de fome, e não mentia. Tinha, afinal, fome de tudo o que via: queria ser, queria ter, queria existir para os outros naquele mundo que, simplesmente, não fora construído para ela. Motos e carros passavam, seus cabelos esvoaçavam, suas pernas tremiam. A angústia crescia na garganta, enquanto via no horizonte a água subindo lentamente

Não poderia evitar, com isso já havia se conformado. Pois então, o que faria agora? Tudo o que lhe cabia naquele momento seria, talvez, largar-se. Para o mundo, para a vida, para deus - tanto faz. Com tantas tormentas premeditadas, a única coisa que considerava viável, era desistir. Não sabia para quem, não sabia por que. Mas iria, sim sim. E tudo ficaria melhor. Iria, não duvide! - se ao menos pudesse atravessar aquela rua.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Aquela quase náusea


Digamos que são tempos remotos.
Considere um mundo saudável e limpo, uma sociedade igualitária e pacifista. Pense em uma unanimidade conquistada através de debates tranquilos. Transparência, razão e fé sempre muito equilibrados. A sensibilidade e a tolerância presentes em todas as ocasiões, em proporções razoáveis. Imagine estrelas no céu, noite após noite, milhares por pedacinho considerado.
Agora, inverta tudo.


Digamos que é tempo, imediatamente agora.

Considere a humanidade perdida em meio a tanta ambiguidade caótica. Pense em uma raça inteira retrocedendo, movida pela ganância e o cinismo. Pense em um mundo morrendo, em ruas sujas e violência. Uma juventude inconsequente e imediatista, valores subvertidos, excesso de informação mal interpretada.

Imagine o pobre personagem principal de nossa história, vendo tudo isso acontecer diante de seus olhos puros e desprotegidos, sentindo-se pequeno e insuficiente enquanto inúmeras soluções passavam pela sua imaginação.

Sabe por que tudo isso? Sabe por que essa história é sobre ele, e não seu vizinho?

Ora, pois ele – e aparentemente apenas ele – ainda se importava com o mundo ao seu redor. Sim, e magoava-se com as nuvens cinza que preenchiam os céus. Cada ferida do mundo ardia intensamente no seu enorme coração. Existem outros com ele, eu sei, espalhados por aqui e ali, mas hoje, é ele que me importa. Por quê? Pois eu, e talvez somente eu, conheço a história daquela única noite em que se sentiu pronto para desistir do mundo como o tinha – e acho que todos deveriam saber o que foi que o impediu.

Incansável, afinal, permaneceu através da noite, sentado em sua velha escrivaninha defronte a janela. A noite abafada passava por ele, nem uma brisa sequer havia o alcançado. Abraçava os joelhos bem perto do peito, seu nariz escorria irritantemente, mas ainda não sentia vontade de fazer algo para impedi-lo. Já não mais chorava, se é isso o que pensa. Na verdade, as lágrimas haviam cessado há algum tempo e apenas o nariz manteve-se, teimoso.

De súbito, levantou-se pisando por entre folhas e livros. A mesa rangeu, mas decidiu ignorar – havia decidido que iria ignorar coisas a partir de agora. Quando bem o desse vontade, fingiria não ouvir e pronto, ninguém o faria mudar de posição. Ajustou a postura - costas eretas, cabeça erguida observando bem longe a vida na cidade. Sentiu-se grande de onde estava, mais alto do que o mundo, bem acima do nível mundano. Olhou para baixo, para a calçada quase escura que se estendia vazia ao que pareciam anos-luz de sua janela. Assustou-se. Um calafrio lhe percorreu a espinha, sentiu o estômago gelar. Vertigem, tontura, quase medo. Fechou os olhos e respirou fundo, esqueceu-se ali por alguns segundos.

Calma, só não pense que é assim que nossa história acaba – não, não. Tudo isso é apenas relevante pois, exatamente naquele momento – de pé em cima da mesa – o nosso personagem principal começou a perceber o quão insano havia sido nas últimas horas, enquanto sentara-se sozinho em seu quarto escuro, revisando e reconsiderando todos os aspectos de sua vida. Conhecendo-se tão bem quanto julgava conhecer, sabia que nunca iria cumprir com as promessas que havia se feito. Afinal, se conseguisse, era assim que as coisas seriam: ele, voluntariamente aprisionado em seu quarto enquanto a vida acontecia lá fora. E até se aceitaria em um mundo particular – seja essa qual fosse – e ignoraria as consequências. E as dores e sentimentos. Não era disso o que precisava, e o que sempre o diziam?, precisava de uma dose um pouco maior de egoísmo no sangue para viver a vida direito.

Afligia-se ao pensar na cena, ao pensar na possibilidade de se tornar mais um desses que agora tanto adorava criticar. Sabia que nunca seria capaz de fazer algo do tipo, não apenas por vergonha mas também por falta de caráter. Havia vivido tempo demais dentro de sua pequena bolha para saber como agir de acordo com a tal malandragem inconsequente de que tanto falava. Era-lhe tarde demais.

Virou pelos calcanhares, olhou para o quarto penumbrento com os olhos entreabertos. Sua cama amassada esfriava estática, a cada minuto que se passava com ele na janela. A porta fechada, bem na sua direção, o guardava a salvo de um mundo de questionamentos e comentários infames - por que estava de pé em cima da mesa? havia chorado? Tudo isso porque se importa! O altruísmo está lhe fazendo mal à saúde, coitado... 

Coitado. Coitado! Inquietava-se até, forçava-se a respirar fundo. Preferia não pensar sobre isso agora.

Considerou por alguns minutos: se não pensasse sobre isso agora, pensaria sobre o que então? Nada mais passava pela sua mente senão a expressão enrugada de seus conhecidos entortando a cabeça e o chamando de exagerado. Naquele momento, não conseguia sentir mais nada senão fraqueza, pois sabia que estavam todos certos, e que a culpa seu sofrimento, no final das contas, era toda sua mesmo.

Mas o que podia dizer para explicar-se? Sabia que havia considerado – e até se prometido, há apenas alguns minutos atrás - mudar uma ou duas coisas em sua conduta e forma de ver o mundo. Teria de treinar-se e controlar-se, claro, mas conseguiria e eventualmente os benefícios viriam para lhe confirmar tudo o que sempre lhe disseram - assim tudo seria bem melhor.  Sabia também, entretanto, o quanto era insano, por motivos já esclarecidos nos parágrafos anteriores.

Desceu da mesa e andou até o meio de seu quarto. E então, não sabia mais para onde ir. Ficou parado ali mesmo, envolvido pela escuridão maciça, quase como um abraço fofo que aos poucos de desmanchava.

Aquela sensação, a que causara toda essa situação desconfortável, era recente. Lembrava-se de um dia não ter se importado, e de ter vivido a sua vida paralelamente a dos outros. Não era desde sempre que sentia aquela quase náusea ao ver seus colegas comportando-se como animais, selvagens e incontroláveis, para esconder evidências de atos delinquentes – lembrava-se tão bem da cena que até o fazia mal: um homem de quase dois metros de altura, parado bem à sua frente com uma postura consideravelmente respeitosa e lambendo os pulsos literalmente, para apagar provas de sua desonestidade. E as mentiras – bom, e as mentiras? Sabia muito bem o peso de seus argumentos nessa posição, sabia muito bem o quanto podia criticar, mas não podia evitar chatear-se!

Foi até a sua cama, deitou-se. Preferia deitar-se quente e confortável a ficar parado no meio de seu quarto, esperando com que esses seus pensamentos tristonhos fossem embora. Porém nada mais estava quente, e a sua falta de sono o aborrecia.

E o que fazer agora?  O que queria mesmo era levantar-se, caminhar até a rua, e talvez ainda não parar de caminhar até que encontrasse com a vida dos outros, longe o bastante de seu quarto e de sua consciência – queria apenas, por uma noite em sua vida, ser como todo mundo e não enumerar, a cada suspiro dado fora do compasso, todas as consequências que tal ato o traria mais tarde. Mas as coisas não eram assim, não era esse tipo de pessoa.

Não.

Era do tipo de pessoa que não se levantaria, e continuaria a remoer-se com as mágoas que não sabia como e a quem expor. E então, sabia bem, em seguida adormeceria tendo em sua mente que o amanhã sempre está por perto e que pode até – talvez, quem sabe? – ser um daqueles dias em que o sol brilha, e várias nuvens brancas flutuam no céu azul, e os pássaros cantam lindas canções... 

sábado, 3 de abril de 2010

Filme vs Filme

Perdoe-me por fazer comparações deste tipo, e tenho plena consciência de que posso estar cometendo uma grande injustiça. Mas este é um daqueles posts que se fez necessário assim, desse jeito mesmo.

Há um tempinho planejei escrever sobre o "Preciosa", um dos filmes mais falados do ano. A história, baseada na novela Push de Sapphire, é sobre uma garota - Clareece Preciosa Jones - analfabeta, pobre e muito acima do peso, mal-tratada e violentada pela mãe abusiva e, se não bastasse, esperando o segundo filho de seu próprio pai. A simples sinopse é de lhe apertar o coração, ainda mais se lembrarmos que garotas como Preciosa existem por todo o mundo, ás vezes em condições ainda piores.


Porém - já que sempre há um porém - o filme em si não satisfaz.

É verdade que Mo'Nique brilha no papel de mãe de Preciosa, liberando sua agressividade de todas as formas humanamente possíveis. E que Gabourey Sidibe também faz um trabalho muito bom interpretando a adolescente em questão. De fato, os atores e personagens não fazem parte da lista de problemas e faltas do filme - não, não.

O problema principal foi o diretor - Lee Daniels - que, ao que me parece, resolveu que não queria deprimir tanto assim o público, o procurou de várias maneiras mascarar e suavizar a história. Observamos ao longo do filme, então, piadinhas fora de hora e uma trilha sonora eclética, que quase nunca combina com o que se vê. Também, uma irritante incerteza no enquadramento da cena e no uso da câmera - estamos em um filme indie francês, e então em um documentário do Michael Moore, e então numa novela das sete, e então em um filme hollywoodiano convencional demais, e então com uma hand-in camera fugindo do monstro Cloverfield enquanto este destrói a cidade de Nova Iorque.  Há cortes e ângulos bobos, que acabam, quando no todo, destruindo o tom do filme. É tudo muito incerto para podermos definir um humor, entende? Tentaram ser piedosos com o público, mas não foram bem sucedidos.

Essa é a minha opinião, se bem que este é um daqueles filmes que você simplesmente gosta ou não gosta. E, por não haver um meio termo aparente para este assunto, acabei entrando em uma longa discussão com amigos - que por um acaso, gostaram do filme. Fiquei, durante muito tempo, me perguntando se não estava de fato exagerando, me prendendo a detalhes, e que "Preciosa" é um daqueles filmes que se deve ver com o coração apenas e eu havia errado ao pensar que poderia assisti-lo com os olhos simplesmente.

Mas não. Não, não, não. Não, não. Não há nada de errado com o meu (carinhosamente apelidado de) "senso crítico exagerado" ou com as minhas "opiniões exigentes demais". Sabe como eu sei? Ora, pois eu vi o filme argentino "O segredo de seus olhos" e ele é, de certa forma, tudo o que Lee Daniels quis que "Preciosa" fosse e acabou não sendo. 

Ganhador do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, "O segredo de seus olhos" é um tanto quanto impiedoso. Porém, bem sucedido. No filme baseado no livro La pregunta de sus ojos de Eduardo Sacheri, o ator Ricardo Darín faz o papel de Benjamín Esposito, funcionário público aposentado que resolve escrever um romance sobre um horrível caso criminal que investigou enquanto ainda trabalhava no Tribunal Penal de Buenos Aires, vinte anos antes.

Juan José Campanella, o diretor, faz um trabalho excelente ao tentar não deprimir tanto assim o público. A história, tensa e agonizante, é muito bem amarrada e conduzida de tal forma que... uau. O bom humor presente é de bom gosto e pertinente. As piadas - de fato engraçadas - estão sempre onde precisam estar. A alternância entre os enquadramentos e o uso da câmera são compreensíveis e envolventes - combinam com as cenas e com os humores da história. Campanella é um gênio quando se trata de criar ângulos. Os atores são todos talentosos, e os personagens bem construídos. As maquiagens envelhecedoras são muito convincentes. A trilha sonora é delicada e - principalmente - pertinente.

É um filme de grande qualidade, verdadeiro merecedor de seu Oscar.

Portanto - se quer saber a minha opinião mais honesta - não perca seu tempo assistindo um filme pesado e triste que poderá não lhe satisfazer por conta de falhas de direção. Se quiser mesmo assistir um filme pesado e triste, assista "O segredo de seus olhos".