Bolinhos de chuva, leite com chocolate, Chavez e, ocasionalmente, Chiquititas também. Havia ainda certa mesa de centro de tampo de vidro e pernas de madeira maciça, lustrosa, que me serviu de palco para muitas brincadeiras de Lego e construções com massinha. Quebra-cabeças de 50 peças. Passatempos simples em tardes preguiçosas, uma infância inteira, marcada na memória à canetinha Faber-Castell.
Não, espere, volte algumas palavras. Há um porém escondido, o clássico impasse. Acontece que, como toda infante, tinha também uma boa porção daqueles tais prazeres secretos – repensando agora, quase obsessões – que não me permitem chamar a infância de simples. Pois sempre que minha avó terminasse com a limpeza da cozinha ou qualquer outro trabalho de costura que poderia ter, logo sentava no sofá, com um suspiro longo e costumeiro: “Ai ai, meu pai” diria, coçando o topo da cabeça com as duas mãos. E assim que terminasse, eu, sorrateira e discreta, aninharia a cabeça em sua coxa, entregando-lhe um livro. Ela, com um esboço de sorriso, o pegaria forte com as duas mãos “O que teremos hoje? Ruth Rocha, hm, interessante...”
Perdia-se na história, mais do que eu, inspirada pelas ilustrações coloridas. Inventava novos tons, forjava novas vozes, balançava os braços compenetrada em sua atuação. Permitia-se à fantasia, dava-se à liberdade que era contar histórias. E eu, ouvinte atenta, segura e confortavelmente acolhida em seu colo ancião, acompanhava-a para onde quer que fosse, perdidamente apaixonada por todas as inúmeras personagens a que minha avó de repente se tornava.
Mas então, por ordens do destino, aprendi eu mesma a ler. Frenesi, verdadeira liberdade. Agora assim sabia o que era felicidade.
A leitura vagarosa, sílabas cantadas, uma por vez, a frase que se alongava em cacoetes e engasgos, até perder completamente o seu sentido. Agora eu também podia fazer a história no meu ritmo, reinventar personagens ao meu próprio tom. Personificação mais fraca e envergonhada do que a de minha avó, claro. Um novo eu. Outro eu. Mais um eu.
Tenho guardados até hoje, com carinho e orelhas amassadas, os meus grandes clássicos: O Pequeno Nicolau, estrategicamente colocado bem no meio da prateleira; Pollyana, com as últimas páginas ainda manchadas pelas primeiras lágrimas que verti sobre um livro; Matilda, constantemente me lembrando do prazer que me tomou ao comprá-lo, o primeiro livro de minha própria mesada.
Li, li quase tudo o que chegou às minhas mãos. Amei, chorei, sorri – até que passei a criar também. E mais tarde, quando a vida me pediu para escolher entre fazer ou assistir, escolhi continuar a escrever apenas. E de vez em quando ainda entrego meus rabiscos para a minha avó, só para poder, após ajeitar-me confortavelmente em seu colo, ouvi-la contar as minhas histórias com aquele seu antigo vigor apaixonado – já quase característico.
Não, espere, volte algumas palavras. Há um porém escondido, o clássico impasse. Acontece que, como toda infante, tinha também uma boa porção daqueles tais prazeres secretos – repensando agora, quase obsessões – que não me permitem chamar a infância de simples. Pois sempre que minha avó terminasse com a limpeza da cozinha ou qualquer outro trabalho de costura que poderia ter, logo sentava no sofá, com um suspiro longo e costumeiro: “Ai ai, meu pai” diria, coçando o topo da cabeça com as duas mãos. E assim que terminasse, eu, sorrateira e discreta, aninharia a cabeça em sua coxa, entregando-lhe um livro. Ela, com um esboço de sorriso, o pegaria forte com as duas mãos “O que teremos hoje? Ruth Rocha, hm, interessante...”
Perdia-se na história, mais do que eu, inspirada pelas ilustrações coloridas. Inventava novos tons, forjava novas vozes, balançava os braços compenetrada em sua atuação. Permitia-se à fantasia, dava-se à liberdade que era contar histórias. E eu, ouvinte atenta, segura e confortavelmente acolhida em seu colo ancião, acompanhava-a para onde quer que fosse, perdidamente apaixonada por todas as inúmeras personagens a que minha avó de repente se tornava.
Mas então, por ordens do destino, aprendi eu mesma a ler. Frenesi, verdadeira liberdade. Agora assim sabia o que era felicidade.
A leitura vagarosa, sílabas cantadas, uma por vez, a frase que se alongava em cacoetes e engasgos, até perder completamente o seu sentido. Agora eu também podia fazer a história no meu ritmo, reinventar personagens ao meu próprio tom. Personificação mais fraca e envergonhada do que a de minha avó, claro. Um novo eu. Outro eu. Mais um eu.
Tenho guardados até hoje, com carinho e orelhas amassadas, os meus grandes clássicos: O Pequeno Nicolau, estrategicamente colocado bem no meio da prateleira; Pollyana, com as últimas páginas ainda manchadas pelas primeiras lágrimas que verti sobre um livro; Matilda, constantemente me lembrando do prazer que me tomou ao comprá-lo, o primeiro livro de minha própria mesada.
Li, li quase tudo o que chegou às minhas mãos. Amei, chorei, sorri – até que passei a criar também. E mais tarde, quando a vida me pediu para escolher entre fazer ou assistir, escolhi continuar a escrever apenas. E de vez em quando ainda entrego meus rabiscos para a minha avó, só para poder, após ajeitar-me confortavelmente em seu colo, ouvi-la contar as minhas histórias com aquele seu antigo vigor apaixonado – já quase característico.
(Crônica ganhadora do 1º lugar no VII Concurso Literário do Colégio Rainha da Paz - em homenagem à minha querida vovó.)
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"Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um deles é burro"
Mário Quintana