Chove horrores. A água escorre como lágrimas no pára-brisa, um choro purificante de lavar a alma. Gotas densas, insistentes, tornam toda a paisagem esbranquiçada. E a avenida escorrega por baixo das rodas, o carro todo trepida. O som do rádio desligado e a falta de um diálogo faziam uma pressão nos ouvidos, que agora se acalentam com o tique do pisca que supera o ruído da chuva. O semáforo fechado, uma mancha vermelha acima do horizonte. O motorista suspira apenas, certamente cansado, uma mão apoiada no câmbio enquanto a outra segura a cabeça.
O semáforo abre, o motorista acelera, faz a curva, espirra água. Daqui de dentro só se ouve o barulho. Uma falta de sincronia ocasiona um pequeno congestionamento. Agora sou eu quem suspira. Pela janela, atrás da camada escorregadia de água, na varanda de uma casa, uma velha vestida de preto se apóia num andador e se prepara para dar um passo. A chuva cai, a varanda é aberta, os cabelos da velha molhados, o carro acelera de novo.
Agora é uma reta só, chegamos em casa. A conversa cansada flui naturalmente. O elevador demora, a velha dando um passo. A lembrança se sobrepoem à visão, as pupilas dilatam com a recordação. O barulho das chaves me desperta.
A porta se abre para o oásis – um cheiro adocicado de conforto inunda a alma. Caminho direto pelo corredor – oito passos – a mãe me recebe com carinhos e afagos e um beijo na testa. Pela janela o vento uiva, e a velha dava um passo.
Queria tomar um banho, banho quente que purifique o corpo. Olhos fechados, corpo posto embaixo d’água, dos cabelos agora escorre o cansaço.
Os olhos se abrem em busca do sabonete, a velha dava um passo.
O jantar é servido, a irmã chama meu nome, a velha usava preto e o meu cabelo ainda pinga, a água fria desce pelas costas.
Do lado de fora chovia um pouco menos; do lado de dentro, o feijão estava quente – tão quente que aquece o cômodo, move a conversa e alimenta as risadas. E a velha, ainda dava um passo?
A poltrona é nova, balança e ainda não range. Mais dois capítulos lidos e o cabelo definitivamente seco. Escovo os dentes, apago as luzes, escondo-me por entre o cobertor. Sonho com pássaros coloridos atravessando o Atlântico enquanto um macaco sapateia no Ibirapuera.
Sono longo, denso. Acordo com um susto, ao som do despertador. Levanto-me preguiçosa, dou um passo.
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"Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um deles é burro"
Mário Quintana