domingo, 21 de novembro de 2010

Fim de tarde

Chove horrores. A água escorre como lágrimas no pára-brisa, um choro purificante de lavar a alma. Gotas densas, insistentes, tornam toda a paisagem esbranquiçada. E a avenida escorrega por baixo das rodas, o carro todo trepida. O som do rádio desligado e a falta de um diálogo faziam uma pressão nos ouvidos, que agora se acalentam com o tique do pisca que supera o ruído da chuva. O semáforo fechado, uma mancha vermelha acima do horizonte. O motorista suspira apenas, certamente cansado, uma mão apoiada no câmbio enquanto a outra segura a cabeça.

O semáforo abre, o motorista acelera, faz a curva, espirra água. Daqui de dentro só se ouve o barulho. Uma falta de sincronia ocasiona um pequeno congestionamento. Agora sou eu quem suspira. Pela janela, atrás da camada escorregadia de água, na varanda de uma casa, uma velha vestida de preto se apóia num andador e se prepara para dar um passo. A chuva cai, a varanda é aberta, os cabelos da velha molhados, o carro acelera de novo.

Agora é uma reta só, chegamos em casa. A conversa cansada flui naturalmente. O elevador demora, a velha dando um passo. A lembrança se sobrepoem à visão, as pupilas dilatam com a recordação. O barulho das chaves me desperta.

A porta se abre para o oásis – um cheiro adocicado de conforto inunda a alma. Caminho direto pelo corredor – oito passos – a mãe me recebe com carinhos e afagos e um beijo na testa. Pela janela o vento uiva, e a velha dava um passo.

Queria tomar um banho, banho quente que purifique o corpo. Olhos fechados, corpo posto embaixo d’água, dos cabelos agora escorre o cansaço.

Os olhos se abrem em busca do sabonete, a velha dava um passo.


O jantar é servido, a irmã chama meu nome, a velha usava preto e o meu cabelo ainda pinga, a água fria desce pelas costas.

Do lado de fora chovia um pouco menos; do lado de dentro, o feijão estava quente – tão quente que aquece o cômodo, move a conversa e alimenta as risadas. E a velha, ainda dava um passo?

A poltrona é nova, balança e ainda não range. Mais dois capítulos lidos e o cabelo definitivamente seco. Escovo os dentes, apago as luzes, escondo-me por entre o cobertor. Sonho com pássaros coloridos atravessando o Atlântico enquanto um macaco sapateia no Ibirapuera.

Sono longo, denso. Acordo com um susto, ao som do despertador. Levanto-me preguiçosa, dou um passo.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Café, broinha, amor

Depois de anos na mesma rotina, sentia-se até orgulhoso em chamar-se aposentado. Lembrava com glória de todos os seus anos em serviço, porém já preferia este seu novo modo de vida, tranquilo, com tarde inteiras gastas no café da rua debaixo. Fora lá que tomara seu cappuccino de aposentado, acompanhado de broinhas de milho, pela primeira vez, e pela segunda, e pela terceira. Começou como esse passatempo, evoluiu para hábito. O cozinheiro já até o chamava pelo primeiro nome.

E foi lá pela terceira ou quarta semana da vida nova em que, experimentando sentar-se na calçada ao invés de no balcão, viu-a passar. Não era a primeira moça em quem reparava naquela tarde, já que, sentado tão perto do barulho, não conseguia ler, e precisou achar outro passatempo enquanto tomava seu café. Viu moças bonitas, feias, encontrou algumas conhecidas com quem chegou até trocar uma palavra ou duas, e ela – meu Deus, quem era ela? Parecia tão distraída, caminhando na calçada como se vindo na sua direção – será? – moderna e casual. Parou ao lado de sua mesa, apertando os olhos para ler quais eram os pratos do dia. Tinha olhos azuis, talvez. E cabelo moreno, claro, quase loiro. O velho aposentado a encarava, com a boca aberta, segurando uma broinha no ar. Preparara-se para mordê-la, mas distraiu-se tanto que acabou por se esquecer. E assim ficou, como uma estátua abobada enquanto ela ainda decidia se entraria ou não.

Afinal decidiu que não, e virou-se para atravessar a rua. Em algum momento durante este processo, a tal broinha caiu da mão do velho e, rolando, seguiu a moça até bater em seu pé. Com um impressionante desdém, ela olhou para baixo e, identificando a broinha, virou-se para o velho com apenas um sorriso simpático. Ele ainda se encontrava naquela mesma pose boquiaberta que, agora sem a broa, tornava-se um pouquinho mais boba. Respondeu-lhe também com um sorriso, vergonha misturada com charme, mas a reação foi-lhe tão demorada que nem sabe se ela a viu. Já atravessava a rua, cabelos avermelhados ao vento.

Mal posso lhe contar qual sensação foi aquela que dominou nosso amigo aposentado que, tão maravilhado estava com aquele novo acontecimento, nem se ressentiu pela broinha desperdiçada. Foram pouquíssimos segundos, pensava, mas que parecem uma eternidade e meia. Estava maravilhado. E tão ousado que até pediu uma pedaço daquele bolo de chocolate que ainda não havia provado. Será que ela voltará amanhã?, sonhava durante sua caminhada de volta para casa, será? Se sim, puxarei papo, simpático e cordial e... Assim formulou em sua cabeça toda a cena que se seguiria no dia seguinte, se ela aparecesse de novo.

Infelizmente, porém obviamente, ela não voltou. Nem no dia seguinte, nem nos outros ainda. Não que ele já tenha desistido de esperar. Viciou-se de vez. Não há mais manhã em que não acorde pensando nos passos que dará à tarde até o café. O cozinheiro já até deixa o seu pedido pronto, pois sabe que lá pelas três horas da tarde, o aposentado irá chegar e sentar-se em qualquer uma das mesas da calçada, confortar-se na cadeira de madeira, ajeitar a gravata, arrumar o cabelo de acordo com o vento, abrir um livro e encarar impiedosamente a rua, esperando aquela moça passar de novo.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Tardes infinitas


Pés numa sincronia atrapalhada. Girar infinitas voltas com os braços abertos – o vestido se torna um balão. Os olhos fecham de tontura. Um sorriso aparece no rosto, ofegante.

Grama. Poças d’água. Parque. Machucados no joelho. O sono. O sofá. O corpo esguio, estirado nas almofadas. Branca de neve, a fita cassete que falha sempre na primeira fala do Zangado – o que era mesmo que dizia? O colo da mãe. Ou do pai, quem estivesse disponível na hora.

Desperta. Uma fração de segundos passa, e então os olhos estão abertos – simples assim. Às vezes o sono volta, o sonho se renova. Ou não, e então se levanta de sua caminha, a casa adormecida, a meia-luz esfumaçada. Independente, rouba bolachas do armário do meio. A mãe acorda com o barulho, faz um cafuné, dá-lhe um beijo na testa. A franja bagunçada.

O resto da casa desperta. Sol a pino, bate meio-dia. Da cozinha, muito barulho, alguém fala alguma coisa – o quê? Não, nada... A irmã assiste TV, hipnotizada – deveria estar se arrumando para escola! Um quebra-cabeça, 20 peças, espalhado pelo tapete; uma peça se esconde despercebida embaixo do sofá. Será perdida, e logo o focinho do cachorro!... A irmã ri – do quê? Não, nada não... A escada de Lego que nunca dá certo e – droga! – desmorona. Um barulho inunda a sala e a irmã se irrita, perdeu a piada. Almoço, a barriga é pequena, não cabe muito. Confusão. A mãe fala, o pai fala, a irmã se levanta. A porta aberta, o vento bate na janela, o pai acena (“tchau, bebê”), a irmã passa reto, nem liga.

Meio da tarde, brisa fina passa pela janela. Pés descalços no tapete macio, numa sincronia atrapalhada. Girava infinitas voltas com os braços abertos. Os olhos fecham com a vertigem, um sorriso aparece no rosto. Para, cai, deita no chão mesmo, ofegante. O sono, o sofá, o corpo esguio esticado nas almofadas. Poderia dormir até depois desse dia. Branca de Neve, a fita cassete que falha – qual era a fala mesmo? Já até esqueci... A mãe vem, dá-lhe outro beijo na testa “já já eu venho brincar com você”. Expectativa nasce, se opõe ao sono – brincar? Brincar de quê?...