terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Nota:

... estou em Marte? - mas a pergunta visceral, dolorida de ser feita, saiu da boca em tal volume que nem aos seus próprios ouvidos chegou. Por um instante ainda, boba como só ela pode ser, ficou esperando um ou outro eco de sua voz - mas nada, claro. Pega de novo entre o vazio e a surpresa, respirou fundo. Dessa vez seria ouvida, nem que fosse até por outras pessoas também. E quando abriu a boca e sentiu seus lábios gesticularem, percebeu que, involuntariamente - e, portanto, incontrolavelmente - a tal pergunta visceral se transformava numa afirmação maldita - estou em Marte! - ela gritou, sem conseguir se segurar, e ainda repetindo mais duas ou três vezes, cada vez mais alto (talvez para retardar o momento em que lhe restaria apenas seu eco - e mais nada.)

domingo, 19 de fevereiro de 2012

São duas

senhoras, solenes, elegantes. Blusas de seda, perfumes franceses, pérolas e ouro. Uma usa sapatos de salto  que batem firme no piso frio e ecoam pela sala vazia; a outra usa crocs. Uma fala, fala, fala; a outra come pipoca e concorda. 
- ...então, casou com o padre! 
- hmm, hm!?
- é! também não acreditei... um pa-dre! isso sim é ter Jesus na vida... 
Sentadas na mesa do café, continuaram debatendo sobre como a moça em questão pode deixar um advogado para se casar com o padre - 
- tá certa ela, o advogado era um bobo, um crianção. uma vez perguntei a ele se também gostava de  Chopin - por que ela toca Chopin né, você já chegou a ouvir? nossa, toca muito, muito bem. aprendeu com o avô, o que era militar e perdeu um rim - bom, perguntei se ele também gostava de Chopin e ele me responde - o quê? a bebida? bobinho, ouviu champagne!
- é ingênuo, só isso. antes ela morava numa casa com piscina, dois carros na garagem, roupa nova toda semana. agora ela tem o quê? hóstia pro jantar! que Deus não me ouça... 
Um funcionário do café se aproxima para devolver o guarda-chuva que uma delas esqueceu no balcão. 
- oh, que cabeça a minha! olha, é muito raro eu esquecer guarda-chuva por ai, viu? muito raro mesmo, acho que só me aconteceu duas ou três vezes. deve ser o calor, me deixou esquecida. muito obrigada, viu mocinho? muito gentil da sua parte, o que eu faria sem o guarda-chuva nesse tempo maluco. está muito maluco esse tempo né, um calor insuportável e então chove...
O funcionário, desconfortável, sorria esperando a sua chance de ir embora - sim, sim. verdade. maluco, não? viu uma brecha em um cliente que se aproximou do caixa - com licença, senhoras, tenho que trabalhar - e se afastou da mesa o mais rápido o possível. A mesma senhora continuava:
- ah sim, claro, é importante trabalhar.  E então para a amiga - que gracinha, não? mas olha, faz anos que não perco um guarda-chuva assim... agora, emprestados? já perdi catorze!
- nossa, catorze!? que abuso! eu deixei de emprestar depois do segundo. 
Colocando mais e mais ketchup no seu pão de queijo, a primeira senhora continuava falando. Sobre o neto, sobre o filho, sobre a nora, sobre o gato. A outra senhora balançava a cabeça enquanto lambia os últimos grãos de milho não estourado, soltando ocasionais mm, hmm! que reafirmavam as opiniões da amiga. Quando estava prestes a me levantar para ir embora, tive a chance de ouvir da primeira senhora contar -
- ah, adoro ketchup! sabe, coloco em tudo, tudo mesmo. no arroz, na carne, nas batatas, no peixe, na lasanha, no camarão, no caviar... da última vez que tive que acompanhar meu marido para um jantar do departamento, eu aproveitei e levei também alguns sachês de ketchup daquele restaurante... qual é o nome mesmo? McDonaldo? é, acho que sim. bom, levei comigo alguns sachês de ketchup na bolsa pra colocar na minha comida né, você sabe, é sempre tão insossa. cheguei lá, serviram o jantar - um macarrão sei-lá-o-que, que estava horrível por sinal - e quando eu fui pegar o ketchup na bolsa, dois saches tinham estourado! meu lenço da Dior - aquele meio cinza, que meu marido deu de 28 anos de casamento - está cheirando a tomate até hoje! e olha que eu já o lavei duas vezes, hein...




(pois é, São Paulo. Me enganei sobre você. No final das contas, você é sim uma ótima cidade para se escutar...)

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

D.R.

ele estava claramente nervoso. balançava as pernas, rasgava um guardanapo em pedacinhos, dava pequenos goles na sua água com gás, olhava para a entrada da padaria - e recomeçava. de repente se lembrava de algo,  retorcia a bochecha como se tentasse piscar um olho só e escrevia mais uma frase num guardanapo que parecia conter uma lista. roía as unhas, olhava para o teto. escrevia mais alguma coisa no papel. e recomeçava. 

então ela chegou. roupa social, como se tivesse saído de um escritório, mas cabelos loiros soltos e bagunçados, como se tivesse andado muito tempo no vento - e ventava bastante lá fora. entrou na padaria e logo o viu, abriu no rosto um sorriso aliviado, satisfeito. ele endireitou a postura, passou uma mão no cabelo enquanto a outra fazia um aceno tosco. suava. 

ela sentou na frente dele, contou-lhe uma coisa ou duas - o trânsito, a condução cheia, a chuva que vinha. e sorriu mais uma vez, aquele mesmo de antes. ele a olhava na transversal, desconfortável. estava óbvio que não ouvia tudo o que ela dizia. então, ela lhe perguntou se tudo bem. ele lhe mostrou o guardanapo
- cheguei aqui faz tempo. escrevi essa lista, achei treze motivos por que a gente tem que se divorciar. 

os ombros dela desabaram, os braços caíram ao seu lado. sua nova postura a fez diminuir muito de tamanho diante do homem agora de braços cruzados e costas eretas. eles se olharam por um minuto longo. silêncio. agora com as mãos sobre os olhos, ela chorava. e ele balançava as pernas, rasgava um guardanapo em pedacinhos, dava pequenos goles em sua água com gás, olhava ao redor. e recomeçava.