sábado, 20 de dezembro de 2008

A fonte dos desejos

Fechei meus olhos bem apertados, até que nenhuma luz pudesse entrar e segurava a moeda bem firme em minhas mãos, esquentando-a. “Faça o seu pedido,” dizia a placa “respire fundo e jogue a moeda por atrás do seu ombro direito.” A água cristalina mostrava milhares de outras moedas, que reluziam com a luz forte do sol e a grande imagem do Buda esculpida na parede atrás da fonte trazia o tom cômico á situação. Ao meu redor, pessoas riam e jogavam as moedas como se estivessem jogando pão aos patos, rindo sem controle e sem amor. Respirei fundo, era difícil escolher algo para desejar a uma fonte. E eu, logo eu, que quero tanta coisa.
“Eu sinceramente gostaria de ter uma forma de ligar e desligar tudo ao meu redor, inclusive o tempo e o ritmo do mundo. Queria poder chegar ao fim do dia sem preguiça, chorar sem ter culpa. Queria poder prever o futuro, ter tempo de analisar a situação, ter mais tempo pra pensar e também, tomar as decisões certas. Queria saber quais são as decisões certas, e por quê. Queria passar mais tempo sozinha e que os outros pudessem passar mais tempo comigo.
Queria me conhecer melhor, me surpreender mais. Queria conhecer melhor as pessoas ao meu redor, e que elas me conhecessem por completo. Queria poder ler mentes, que a minha fosse facilmente lida. Queria não ter toda essa imaginação, ou que as minhas invenções se tornassem reais. Queria que as pessoas vissem meus sonhos, queria que todas me entendessem, e perceber que elas me entendem sim. Queria ter a liberdade de não ser levada a serio.
Queria poder controlar a minha vida, meu futuro, as pessoas ao meu redor. Queria que algumas coisas desaparecessem e poder reescrever algumas histórias, mas sem perder a experiência. Queria ter completa noção de tudo.
Queira viver do talento; queria ter um talento.
Queria ter o orgulho para me arrepender e não ter essa vergonha de me ter por vencida.
Queria que compreendessem todas as minhas palavras, e que me explicassem o que elas querem dizer. Queria não ter medo, não hesitar, não mentir, não me enganar.
Queria entender o que eu quero; compreender o que é saber.
Queria algo que ninguém mais quer.
Queria sempre me lembrar que é querendo que sei o quanto estou viva.”
Terminei de fazer o meu desejo e joguei a moeda por trás do meu ombro. Ela bateu na beirada da fonte e caiu no chão, fora da fonte. Deixei-a lá mesmo.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Pela última vez...

Subi naquele palco sentindo as mãos frias e o calor das luzes focadas em mim. Respirei fundo e fechei os olhos enquanto as cortinas se abriam, revelando-me ao público impaciente.
Senti meus pés doerem por causa da sapatilha enquanto o cansaço me dominava. Lembrei de sorrir quando me era conveniente. Falhei em esconder o nervosismo, tentei mostrar graça.
Escondi-me por um tempo, pensei e me concentrei antes de fazer qualquer coisa.
Fiz parte da bagunça, dei bronca nas barulhentas, arrumei cabelos e fiz maquiagens de colegas.
Apavorei-me, enlouqueci, não controlei meu choro.
Senti-me no topo do mundo, servi de inspiração, ouvi aplausos e gritos histéricos. Gaguejei
Errei e me decepcionei.
Abracei quem não gosto, reclamei para quem quis ouvir. Senti orgulho e vergonha ao mesmo tempo. Fiquei feliz de poder estar lá.
Basicamente, dancei Ballet Clássico.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Coragem

Senti subir pelo o meu corpo uma onda que começou nos pés e terminou nas orelhas. Estranhei um tanto no começo, mas depois acostumei-me e tudo voltou a ficar bem.
Descobri-me de frente à porta, prestes a sair. Por um instante ou dois hesitei, ensaiei as falas, pensei demais.
Fiz o meu melhor para disfarçar qualquer sensação de incerteza e abri o meu melhor sorriso, não a convenci com as minhas gaguejadas, mas consegui libertar-me e ir antes que tivesse mais tempo para pensar e acabasse tomando coragem para conversar.
Suspirei de alivio. Não falei nada, e nada mudou.
Agora sei que a covardia é a economia de sensações desnecessárias.
Agora sei que a covardia faz com que o mundo seja suportável.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Retardamento Emocional

Tinha a impressão que havia mais peixes do que água. Ao sol do meio dia, podiam-se ver através da água barrenta milhares de olhos prateados, que brilhavam atenciosos. De vez em quando, via-se um vulto ou dois se mexendo rapidamente, causando bolhas ou trepidações na superfície daquele lago tão pequeno. As libélulas e as moscas se aproveitavam da tranqüilidade das águas para descansar suas asas. Do lado de fora, camuflados pela grama, velhos e gordos sapos viviam com a sua cantoria perturbadora, gozando da falta de atenção dos bichos.
Não era muito grande, mas era – certamente – o lago mais bonito de todos. Era delicado e intenso ao mesmo tempo e os peixinhos acrescentavam um tom caseiro àquele ambiente tão selvagem. Até mesmo as formigas eram diferentes, amigáveis e cuidadosas e até esperavam algumas horas antes de atacar a carcaça de algum animal morto, para mostrar respeito. A quietude do lugar era o seu principal charme. A bizarra ausência de grilos fazia com que a música dos sapos e das moscas ficasse mais simpática, misturada com o farfalhar das folhas das poucas árvores que haviam por ali. Um pouco da magia do lago vinha junto com a sensação de abandono total por seres humanos, já que era quase inabitado pela raça superior. Porém, havia sim humanos, como sempre. Na verdade, neste caso era apenas um homem, inofensivo e pacifico que gostava de ficar na beira do lago e apreciar o que podia. Era o único que parecia entender aquele lugar, podendo então, frequentá-lo. Entretanto, aquela simples pessoa não era mais do que um ser humano, que se enganava achando que podia entender a natureza e a magia, pensando não fazer nenhum mal quando apenas parado ali. Mal sabia ele.
Todos os dias após o almoço, o homem pegava a sua vara de pescar, a sua mochila térmica cheia de água potável e iscas vivas, alguns livros e ia para o lago, que não ficava muito longe de sua casa. Em todas as tardes o velho descia a ladeira, passava pelo meio de uma floresta mal formada, pisando em folhas secas e poças d’água, caminhando bastante até chegar à área do lago. Sempre que ele chegava lá ele respirava fundo e sorria para tudo aquilo, orgulhoso de poder estar em um lugar que ele não construiu, mas que fazia parte de sua alma do mesmo jeito. Fazia sempre o mesmo caminho e colocava a sua cadeira sempre no mesmo lugar.
Os peixes já ignoravam a isca que ele jogava na água, de tão acostumados que estavam daquela rotina. Os sapos sabiam que não deveriam se aproximar do lugar onde o homem costumava colocar a sua cadeira e as libélulas e moscas contornavam a trajetória da vara de pesca mesmo quando ela não estava lá. As formigas se continham no outro lado do lago para não serem pisoteadas e até mesmo a grama já desistira de crescer por todo o caminho que o homem fazia.

Foram-se mais de trinta anos com a mesma rotina. Era tudo um vício, uma dependência fortíssima. A carência enlouquecia e, sem ter o lago a sua frente, o homem adoecia. Adoecia de corpo e alma; seu coração palpitava e começava a sentir uma pontada bem onde a saudade divide lugar com a razão. Sua moral se abalava um tanto e o pobre velho desmaiava, sem força alguma.

O lago trazia, de fato, uma sensação revigorante, que até nauseava os desavisados. Sua brisa fortificava a memória e imortalizava a sensações. Era um formigamento que subia dos dedos dos pés até os fios de cabelo.

Era impressionante.

No entanto, o humilde homem nunca tinha parado para notar se algo havia mudado, apenas pelo simples fato de achar que era desnecessário, entanto o homem não sabia que o necessário está em algum lugar entre o imaginário e o real.

E como era esperado desde o começo da história, o lago foi perdendo a sua magia, enquanto os bichos começavam a agir da forma que deveriam, mordendo iscas, matando, atacando.

O velho, sendo o que era, só achou que havia algo errado quando sentiu que o formigamento havia diminuído notavelmente, mas não, não acho nem um pouco bizarro quando os peixes morderam as iscas ou quando grilos apareceram com a sua cantoria. E foi quando ele, sentado de frente ao lago, respirou fundo e não sentiu nada que tudo ficou claro.

Sim, ele adoeceu. Passava mal durante os dias e através das noites, sem encontrar remédio ou cura. Nada conseguia aliviar aquele desespero. Então, a “triste hora do fim se faz notória”, enquanto o perdão é inconcebível e a culpa é solteira.

O homem sabia muito bem que tudo aquilo era culpa dele – sem eufemismos ou disfarces, era a óbvia culpa – então, enquanto enfraquecia lentamente sozinho e triste, chorava lágrimas de decepção, e se sujava com o remorso que o consumia.

Contudo, já era tarde.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

A memória eterna

Já era fim da tarde. Ela tinha se levantado rápido demais da cadeira, e por isso, tudo girava. A pouca luz que iluminava o estacionamento era suficiente apenas, as lâmpadas dos postes não estavam acesas ainda e a noite se aproximava mais rápido do que nunca. As árvores estavam paradas por causa da falta de ventos daquela tarde de verão, e os pássaros se reuniam nos fios elétricos suspensos por toda a rua.

Não havia nenhum barulho ou movimento. Estava tudo tão bonito.

Ela fechou os olhos e desejou, com toda a sua vontade, que aquele momento pudesse durar para sempre. Lágrimas quase caíram dos seus olhos quando viu que os pássaros iam embora, um por um, enquanto um avião passava em cima de sua cabeça, fazendo o maior estardalhaço.

Bom, na memória ele dura, ela pensou e foi se deitar.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

A adolescente e a sua mãe

Era o mesmo aperto no peito que ela sentira muitas vezes antes. Vinha como uma avalanche discreta que a impedia de pensar ou agir. Isso deve explicar a sua dificuldade em abrir a porta. Já não conseguia segurar o choro com tanta segurança e sentiu um grande alívio quando a chave se virou na fechadura. Seus joelhos doíam e sentia um grande cansaço, mas acima de tudo, seu coração parecia não mais agüentar todo aquele desespero. Entrou esbaforida na casa, jogou sua bolsa na poltrona mais próxima e sentou-se no sofá. As lágrimas finalmente começavam a cair pesadas e magoadas, mas que iam vagarosamente aliviando o desespero antes sentido. Ela sabia que estaria sozinha. Sabia que quando voltasse de sua aula, tudo estaria exatamente no lugar onde foram deixadas. Isso fazia com que suas lágrimas caíssem ainda mais magoadas. Quinze minutos depois ela já estava no banho, com as cicatrizes daquele desespero se escondendo - elas nunca se curavam. Até hoje, algumas continuam abertas, mas não doem contanto que estejam esquecidas na memória. Muitas horas depois a sua mãe chegou, acompanhada do resto de sua família. A adolescente sorria com a alegria de uma criança diante o Natal. Era um dos sorrisos mais sinceros. Talvez a segurança e o alívio de finalmente tê-la por perto faziam com que a sinceridade ficasse ainda mais clara. A expressão de sua mãe era de cansaço. Estava faminta, sua cabeça e suas costas doíam por causa da bagagem pesada. A viagem tinha sido longa demais – agora ela só queria dormir. Sentindo a pura ansiedade, carente como sempre, a adolescente falava nervosamente com a vontade de conversar com a sua mãe, recuperando o tempo perdido. Sabia que a sua mãe não estava interessada naquilo, mas sentia que precisava contar tudo com todos os detalhes, só para poder continuar a fingir que a sua mãe sempre esteve ali.


Com sorrisos e piscadas a mãe ouvia tudo, porém um pouco distraída. Mostrava em seu rosto que tentava se importar com a urgência das fofocas, mas ainda assim, só queria dormir.


Já um tanto sem fôlego e finalmente quieta, a adolescente observava enquanto a sua mãe comia - sabia o que viria a seguir. Sabia que depois que a sua mãe terminasse, elas se abraçariam por um bom tempo, e que depois iriam dormir. Também sabia que ia demorar um pouco até cair no sono, e que de manhã teria que acordar cedo e sozinha, já que a sua mãe não ouviria o despertador.


Isso fazia com que aquele desespero inicial voltasse talvez um pouco mais sutil, mas ainda devastador, e então ela tentaria adiar o máximo possível a hora de dormir, só para poder ficar mais tempo com a sua mãe, só para conseguir diminuir o tempo que ficaria acordada e sozinha no escuro. E para isso, ela recomeçou a falar.
Mas a sua mãe já estava cansada demais para fingir que se interessava. Para fazer com que a adolescente parasse de falar de vez, abraçou-a muito mais forte do que de costume, deu-lhe um beijo na bochecha e jurou amor eterno.


Este abraço bastou para que todo o desespero e angustia sumissem, e então a adolescente conseguiu dormir com a confiança de quem sabe que o amor é indestrutível.

sábado, 8 de novembro de 2008

Nota de uma sexta

Passei algumas horas com ela e nós conversamos sobre assuntos rotineiros.
Mas dessa vez eu a olhei nos olhos.
Agora, eu a conheço muito mais.

domingo, 2 de novembro de 2008

No Parque

E elas meditam.

Talvez não exatamente isso, coisa parecida. Estão sentadas no parque, sentindo a grama pinicar os seus dedos, olhando para o menino sentado no banco à frente, batalhando com o picolé que derretia sob o sol quente. Estão ali há algum tempo já, observando o movimento e as pessoas, sem se mexer, sem pensar, sem falar. Sem pensar, eu digo, pois não fazem qualquer sinal de gozação ou bom humor. Estão apenas ali, sentadas as duas, cada uma com a sua vida.

Uma delas é feia. Usa óculos grosseiros e redondos, tem o nariz todo marcado de cravos e espinhas, seu cabelo é bagunçado e volumoso. Seu sorriso é bonito, porém. Tão bonito, aliás, que compensa por todos os outros defeitos fisiológicos que a garota tem. Até seus olhos tortos são desculpados por causa deste seu sorriso.

A outra, é claro, é linda. Olhos grandes atraem toda a atenção, e combinam com o formato do seu nariz e com a cor de seu cabelo. Os raios do sol fazem com que mexas mais ruivas aparecessem, fazendo com que o tom castanho claro de seu cabelo mude. Seu sorriso é bonito também, mas não tanto quanto o resto do seu rosto.

E era disso que a feia se gabava toda vez que as duas brigavam por qualquer motivo que fosse. Ter o sorriso mais bonito do que o da amiga a fazia sentir as nuvens tocar os pés. Ter o sorriso normal, enquanto o da amiga era lindo não fazia nenhuma diferença na vida da outra. A feia vivia dentro de um mundo de insegurança e baixa-auto estima, enquanto a outra - que depois de muitos anos perdeu a paciência para essas coisas - não se importava nem um pouco, mas mentia descaradamente para a amiga, confortando-a do jeito mais superficial e invejado do mundo. E assim levavam a vida. A feia chorava, a bonita lhe dava os ombros, mas fingia que não.

As duas já estavam sentadas no parque há pouco tempo, e aquela sensação de ansiedade e carência apertam no coração da feia. Ela olha para a amiga, que observa os meninos jogando futebol.

"Seja sincera agora." disse a feia encarando os olhos da bonita como se quisesse intimidar a mesma para ter certeza da sinceridade. Respirou fundo e desabafou "Você me acha bonita?"

A outra lhe olhou com certa surpresa, pensou um pouquinho antes de responder, e também desabafou "Nem um pouco."

A feia suspira com o alivio da verdade e se desaponta com a dor da traição.

E então elas meditam.

sábado, 25 de outubro de 2008

Não esqueça o mar

Ela estava sentada na sua mesa, de frente à janela encarando o mar. Segurava firme a caneta e a sua mão suava. O papel branco à sua frente a esperava quieto, e toda vez que ela o olhava, estremecia mais um pouco.
Tomou coragem e escreveu as suas primeiras palavras. Riscou-as com insatisfação. Respirou fundo e retomou a escrita, sabia que ia doer, mas aquilo era preciso.

Sabe que por muito tempo sofri com a saudade do teu abraço, com a falta do teu cheiro e com o frio que o seu toque antes protegia, mas que agora me atinge brutalmente, sem nem ao menos avisar.
E também percebe que ao ir assim, sem nem dar espaço ao remorso, deixou para trás milhares de desejos mal planejados, e pesadelos que me acompanham pelos dias que se passam tão calmamente. Entende que a incerteza que ficou comigo é pior que as memórias e as fotografias que ainda ficam penduradas, por causa dessa minha falta de coragem de tocá-las.
Dói-me escrever essa carta, sabendo que depois a rasgarei em mil pedaços e a jogarei pelo ar, esperando que alguma parte lhe alcance, em qualquer que seja esse lugar onde está.
Gosto de pensar que fugiu para a cidade grande, para algum lugar com muitas pessoas parecidas, onde facilmente se perdeu em meio de tantos outros que lhe cercam. Gosto de pensar que lá, eu não te encontrarei e que lhe confundirei com qualquer um do resto do bando.
Mas em meio de tantos sonhos e hipóteses não posso esquecer-me do mar, lindo mar azul que me cerca e que me traz o conforto que antes era teu, mas que agora não é de ninguém. O mar, lar de tubarões e peixes palhaços, que poderia o ter levado para bem longe, onde pudesse se esquecer no meio das águas límpidas, onde a memória – e a consciência – já não mais se alcança. Gosto de pensar que as ondas me trazem o que restou daquilo que um dia foi teu e que a noite me murmura palavras de amor, com aquele ritmo tão calmo e sedutor.
Não me esqueço que é no mar onde abrigo nossos sonhos, que o levou para longe de mim, que jogou sal nos meus olhos e depois me abraçou carinhosamente. Não me esqueço que eu o desprezo com todo o meu carinho.
O mar carrega todas as minhas dores e lembranças. Então não se esqueça você, que no mar, você me encontra.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

O grande lucro

O bar estava como sempre, cheio e quente, com o seu incomparável zumbido de mil vozes. Quinta feira, fim da tarde, tudo era uma grande bagunça, pessoas gritando com os garçons que, nervosos, faziam ainda mais erros que de costume, risos histéricos de pessoas já um pouco alteradas e aquele cheiro de cerveja pelo ar.

Já se passava das seis, e seus cinco amigos o esperavam para contar e dividir os lucros do dia, já sentados em uma mesa perto à janela, cada um com o seu copo já meio vazio e impacientes. Estavam quase desistindo e indo para casa quando ele entrou no bar todo sorridente, como uma criança que acabou de ganhar uma caixa de presente com laço de fita.

Sentou-se na mesa calmamente e pediu uma bebida para um moço que passava. Este lhe devolveu algumas palavras mal educadas, afinal não era garçom coisa nenhuma. Seus amigos riam, e ele, sem perder a pose, vestiu a sua melhor cara de superior e disse, não me importo com a bebida, hoje ganhei coisa melhor. Todos os homens pararam de rir imediatamente e apoiaram seus cotovelos na mesa, curiosos para ouvir a história.

Ele bebeu um gole da bebida de seu colega, que nem se mexeu de tanta expectativa. Gozando da situação, reclinou-se na cadeira de plástico, limpou as unhas na camiseta suja, coçou a cabeça e limpou a garganta. Os seus amigos já mortos de curiosidade se cansaram de esperar a sua boa vontade e começaram o questionário.

"O que é? Ganhou boa coisa hoje?" um deles o perguntou. Ele apenas tirou do bolso as três moedas que tinha ganhado naquele dia. "Não mesmo" respondeu. Os cinco se mexeram nas suas cadeiras. Um coçou a cabeça, outro pôs a mão no queixo, outro olho para o teto. Eles até ignoraram a pequena quantia entregue.

"Então você conheceu alguém?" perguntou outro, o que segurava o queixo, piscando um olho como quem sugere malandragem. "Sou casado, rapaz" foi a resposta indignada.

"Já sei o que houve! Você apareceu na TV." este se reclinou na cadeira e cruzou os braços sobre a barriga, esperando a glória. "Eu? Nem de longe!"

As idéias foram acabando, seus amigos começaram a se render e a implorar pela história real. Ele, ria com a glória de quem pode, adorando todos os momentos em que ele tinha o poder.

Finalmente, depois de muitas promessas e propostas, limpou a garganta mais uma vez e tomou mais um gole da bebida de seu amigo, que de novo, não se moveu. Apoiou seus braços em cima da mesa e cruzou os seus dedos. Abriu a boca, formulando a frase em sua cabeça, mas fechou-a de novo. Os cinco outros, imitavam a sua pose, cada um se aproximando dele o máximo que podiam, para poderem ouvir todos os detalhes. Então ele, finalmente, começou. "Imaginem só, eu lá na minha rua. Fechou o farol, eu me levantei e fui até o primeiro carro, ofereci a bala, fiz a propaganda que pude, mas o moço não quis nem abaixar o vidro. Fui então para o segundo carro, vi que haviam umas crianças sentadas no banco de trás, mas assim que elas me viram, esconderam as bolsas embaixo do banco e então eu fui embora. Quando fui para o terceiro carro, a janela estava fechada e havia uma moça dirigindo sozinha. Ofereci a bala com todo o carisma que consegui. Ela me olhou nos olhos, fez não com o dedo e me deu um sorriso. Um sorriso tão bonito, sincero. Me fez sentir um calor assim, subir no meu peito. Eu fiquei tão feliz, que voltei a me sentar na calçada e fiquei lá a tarde inteira, pensando no sorriso da moça. Aquilo fez o meu dia."
Houve um grande silêncio. "Só isso?" um deles perguntou.

domingo, 19 de outubro de 2008

Amor passageiro

O barco navegava balançando lentamente. Ele se apaixonava loucamente por ela. Ela começava a reparar no amor que sentia por ele.
Com o balanço do barco eles iam tomando coragem para conversarem. Viam-se todos os dias, mas nunca sentiram coisa parecida. E mútua.
Passou uma onda e o barco balançou mais do que devia. Ele se desequilibrou e sentou-se do lado dela. Ela, com um susto, levantou e afastou-se.
E ficaram nestes desencontros pelo resto da viagem. Trocavam olhares, risos, sonhos. Agora, o que sobrava, era a vontade de ter tudo aquilo bem perto.
Ela se levantou e se sentou do lado dele. Desta vez, ele ficou lá.
Ensaiaram segurar as mãos, mas o nervosismo era demais, e acabaram por coçar os rostos. O barco ia desacelerando, já não balançava tanto. A urgência do toque era grande.
Seus dedos finalmente se encontraram e se entrelaçaram. O barco ancorou no cais da praia.
Ele olhou nos olhos dela, mas já não sentia mais nada. Ela, sentiu o remorso se apoderar do seu corpo.
Sairam do barco, continuaram as suas vidas

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Ontem, no almoço

Faz algum tempo já que ela age deste jeito. Não tenho certeza se é a velhice que finalmente chegou ou se é a simples saudade, mas toda vez que conversamos ela parece querer me contar algo, mas nunca o faz. Ao invés, fica em silêncio até que eu suplique por algumas palavras sequer.

Ontem foi bem assim. Almoçamos juntas, como não fazíamos há muito tempo. Estávamos nós, sentadas à mesa na mesma posição de sempre. Me senti bem ao perceber que, mesmo depois de tanto tempo, permanecíamos as mesmas.

Havia uma tristeza cansada no seu olhar, algo que nunca esteve lá. Depois de algum tempo naquele silêncio esmagador, começou a me contar uma história sobre a sua infância, enquanto a minha admiração pela sua paciência somente aumentava.

Me contou como foi oprimida por muito tempo, sentiu a dor da perda, mas escondeu-a dos outros, guardou segredos ardentes, ignorou a própria dignidade. Serviu aqueles que a faziam sofrer, com graça e classe. Sempre se importou com os outros, sentiu poucos, porém intensos prazeres. Negou o ócio. Esperou pacientemente por uma recompensa, e tudo o que ganhou foi uma possibilidade de vingança, que desperdiçou, pois não parecia certo.

Nunca entendi como ela podia ter passado por tanto e ter permanecido assim, tão calma, carinhosa, cristã. Nunca compreendi essa sua imensa fé em algo tão questionável. Nunca compreendi também por que a sua fé fazia tanto sentido, enquanto a minha sempre pareceu uma grande piada.
Ontem mesmo, me contou com palavras cruas tudo o que sentiu durante todo este tempo. Me contou com o peso de quem tem muito a se arrepender, como rezou esperançosa e depois desejou o fim de todos e de tudo. Olhou nos meus olhos, se arrependeu de todas as palavras não ditas, me confessou os seus pecados.

No final do almoço, ela me parecia muito mais humana, com suas falhas e pecados. Agora percebo que, depois de tanto tempo vendo-a como a minha heroína, ter apenas uma avó é muito melhor.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

As duas

Foi um caso de amizade lindo, sem brigas, intrigas, traições. Apenas a saudável e inocente amizade de duas meninas. Saudável, eu digo, pois elas aprenderam muito sobre elas mesmas quando estavam juntas, cada uma de um jeito.
 Basicamente, as duas aprenderam a ser. Simplesmente ser, do jeito que der.
 Com essa lição aprendida, elas rodaram o mundo, cada uma de seu modo, porém sempre juntas.
Foram os dias mais legais, as conversas mais estranhas, as piadas mais sem graça.
 E aí uma delas se mudou para o outro lado do mundo, enquanto a outra precisou arranjar outra coisa para ocupar o seu tempo.
Mas as suas juras de amizade eterna nunca foram em vão, e elas são amigas até hoje, e para todo o sempre.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

A pequena história de um grande amor

A pulga Epaminondas foi procurar comida pelas ruas de Paris. Procurou e procurou, porém nada encontrou.
Foi então que viu passeando pelo parque a poodle Petúnia, a única poodle azul-celeste do mundo.
Por ela se apaixonou.
Se alojou nos seus pelos para poder ficar mais perto do seu cheiro, do seu calor, do seu carinho.
Não quis mordê-la para não machucá-la

Por ela morreu de fome.

domingo, 5 de outubro de 2008

Ciranda da Bailarina

Gosto de poder sentir o orgulho e superioridade raspando na minha garganta toda vez que encontro uma oportunidade para falar, em alto e bom tom, Sou bailarina sim, com meia-calça e sapatilha. Salto, danço, rodo, caio confiando nos meus humildes pés. Mas ser bailarina é muito mais do que simplesmente dançar.

É mais do que sentir as pernas latejando mas não desistir em momento algum. Alongar o corpo até o extremo, mesmo que isso te faça sofrer. Saber que todo este sofrimento só resulta em beleza, beleza raramente percebida do jeito que merece. Beleza em troca de dor. Beleza em troca de aplausos. Aprender a esquecer que os aplausos podem ser mera polidez, e não entusiasmo verdadeiro.

É mais do que aprender a arte de fingir nunca errar, atuar com perfeição, esconder as sensações, não se conformar com o bom. Arte de não se importar com a cãibra que te invade, mas com o pescoço alongado.

É mais do que se acostumar a sorrir sorrisos amarelos e magoados quando lhe dizem que o Ballet não pode ser tão difícil assim. Saber se controlar quando lhe perguntam se é verdade que o Ballet é uma arte em decadência. Aprender a tratar destas feridas abertas com nada além da dança.

É mais do que poder sentir a glória de virar duas pirouettes. Ver a sua perna subir até bem próximo do seu rosto. Sentir o alívio único de poder se segurar na barra com as duas mãos e jogar o seu peso para trás com os dois pés firmes no chão, costas retas, joelhos esticados e a sensação de poder, por um instante, confiar nas suas mãos. Acreditar que você é capaz de tudo.

Desafiar a gravidade, sentir dores desumanas, descobrir um outro lado da vida, saber não se orgulhar, aprender não se importar com a falta de interesse - ou de elogios.

Tudo isso para poder subir em um palco e ver que tudo vale a pena. Tudo isso só para poder dizer aos outros que você é uma bailarina e sentir aquela indescritível sensação de quem sabe que está fazendo a coisa certa.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Um bloqueio consertado

Me lembro de quando tudo isso começou. Me lembro de ser pequena ainda, na praia com a minha família. Nossa, mas que família linda nós éramos. Lembro como queria ir para o mar, pular todas as ondas que viessem, grandes ou pequenas, e nadar até que as pontas dos meus dedos estivessem enrugadas.

Mas agora, percebo que sempre tive medo do mar. Toda aquela incerteza das ondas, toda aquela espuma.

Me lembro da última vez que fui para a praia e que não foi tão bom como eu imaginava. Corri em direção ao mar, tentando me lembrar o que era aquilo que me fazia mergulhar de cabeça em todas as ondas. Parei no meio do caminho. Por um momento quis começar a chorar. Agachei na sua frente, meus dedos tocaram na água fria sem querer. Só senti frio, mais nada.

Foi a mesma coisa que senti quando andei de montanha-russa pela primeira vez. Frio, mais nada. Enquanto todas as outras pessoas à minha volta gritavam e se contorciam, eu não conseguia sentir nada.

E minha voz, então, tinha a perdido e não fazia idéia de onde começar a procurar. Beirava a insanidade.

Sofri muito. Chorei bastante. Queimava por dentro, latejando com a incerteza da causa - ou da culpa.

As palavras que não conseguiam sair, as sensações que não conseguia distinguir, o desespero de me encontrar dentro de algo que ainda não havia decidido o que era. Estava querendo me assumir como uma alma perdida, mas mesmo isso eu não tinha certeza do que queria dizer.

O caos emocional me desesperava.


Mas então, um dia tudo se curou. Quando eu vi os seus pequenos olhos pela primeira vez, quando a sua mãozinha enrugada apertou a minha pela primeira vez, quando ouvi o seu choro pela primeira vez, quando eu o chamei de "irmão" pela primeira vez, encontrei aquela "paz interior" que eu nem sabia que tinha mas que foi a solução de todos os meus problemas

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

O Cravo de meu Avô

Estava tranquila quando recebeu o comunicado. Que tédio, pensou. Almoçaram calmamente, um almoço de família muito mais quieto do que o esperado. Todos os seus tios e primos encaravam para os próprios pratos, suspirando um por vez.

Entraram nos carros e se perderam no meio de tantas ruas estreitas e compridas. O moleque ao seu lado não parava quieto, chutando e berrando a cada lombada.

Finalmente chegaram, compraram um buquê de flores amarelas. Ela odiava flores amarelas, porém, quase chorou quando a vendedora lhe entregou um único cravo amarelo. Cravos são flores que ela considera inexplicáveis. Lindas, mas inexplicáveis. Segurou-a na mão como algo precioso, prometendo-lhe segurança e conforto, quase prometendo amor, mas isso era algo que ela não sabia se conseguiria cumprir.

Passaram pelo portão enferrujado, que mesmo sem se mexer, rangia.

Caminhavam pelas ruas tortas e tranquilas, todos os oito. Ela desviou de uma barata ou duas, contorcendo seu rosto até uma careta aparecer. Os 0utros que a acompanhavam não aguentavam mais ouvi-la reclamar. Mas também não falavam para fazê-la parar. Ela tem o direito de falar o que quiser, pensavam todos.

Ela ainda segurava o cravo bem seguro na sua mão. Sentia sua palma suar, mas não tinha coragem de mudá-la de mão, com medo que ela caísse.

Andaram por mais ou menos sete metros. Foi uma caminhada tão curta e insignificante, que ela precisou começar a inventar desculpas para fazê-la parecer, pelo menos, dolorosa. Começou, então, a ler todos os nomes e sobrenomes que estavam escritos por ali. Eram muitos nomes, e ela fazia um esforço tremendo para não rir de nenhum deles - ela era "sem noção, mas não desrespeitosa!

Olhava para as fotos lá expostas, de pessoas velhas e feias e tortas e não vivas. Fotos parcialmente cobertas com a poeira que dominava o lugar.

Como ela odiava tudo aquilo.

Tudo menos a flor, que ainda estava viva entre os seus dedos.

Sem mesmo perceber o que fazia, sempre olhando para as fotos, ela tropeçou no próprio pé e caiu de boca no chão de cimento rachado. Ficou lá deitada de barriga para baixo por alguns instantes, enquanto seus familiares riam de sua cara. Com o queixo ralado, e as palmas das mãos ardendo, ela percebeu que tinha caído em cima de sua flor. Quando pegou-a, amassada e diferente, pôs-se a chorar. Chorou como nunca tinha chorado na vida. Três lágrimas desceram de seus olhos, bem devagar, sem fazer nenhum barulho nem nada. Foi tão silencioso, que ninguém percebeu, então ela também fingiu que não tinha acontecido.

A flor, mesmo amassada, era tão perfeita que ela não poderia - de forma alguma - jogá-la fora. O Cravo era o tipo de coisa que ela ia guardar até que achasse alguém digno de possuí-la. Então mesmo amassada, ela continuou a levar a flor com ela, segurando-a apertada na mão, perto do coração.

Finalmente, viraram aquilo que podia ser chamado de esquina, que dava em uma ruazinha ainda mais estreita do que aquela em que estavam.

Enquanto seu pai mostrava muita dificuldade para acender os incensos que tinha comprado, ela pensava, observando a folhinha deitada no chão, que não se mexia, que estava parada, mas que, ao seu ver, tinha um movimento lindo. O Cravo ainda estava seguro entre seus dedos, e ela começava a se sentir um pouco melhor ao ver que a flor ainda estava um pouco viva.

Pensava profundamente, sobre tudo que tinha visto naqueles últimos momentos. E ela tinha visto muita coisa, coisas que ela nunca tinha reparado antes. Quando finalmente levantou sua cabeça, deu de cara com a foto daquele que eles foram visitar. Seu avô.

A foto de seu avô, diferentemente de todas as outras, estava limpa. A sua expressão rabugenta, a única da qual conseguia se lembrar, estava tão limpa quanto dia ensoralado na praia. Ela estranhamente ficou feliz, e não conseguiu guardar o seu imenso sorriso quando, gentilmente, colocou o seu Cravo Amarelo junto da foto de seu avô.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

A barraquinha da venta

Na tarde de ontem eu vi algo que me machuca até agora. Então imagine você, leitor,o tamanho do meu sofrimento antes de começar a me julgar. Para você me entender melhor eu te explico que foi mais ou menos isso que aconteceu:
Estava no parque sozinha, tomando um sorvete, muito feliz comigo mesma e com a minha decisão de ter ido sozinha ao parque. Eu não costumo ir sozinha em lugar nenhum, na verdade eu geralmente estou rodeada de amigos queridos. Mas bem naquela tarde, bem quando eu estava morrendo de vontade de tomar um sorvete de morango do moço da barraquinha do parque, nenhum dos meus amigos pode ir comigo. Todos eles estavam ocupados com os seus coelhos e seus cabelos, e eu não os culpo por terem preferido lavar o cabelo do que ficar comigo - afinal, cabelo lavado é essencial.
Liguei para todos que conheço e gosto, mesmo para aqueles que não falava fazia tempo. Ninguém podia ir no parque comigo. Posso até dizer que fiquei um pouco magoada quando eu soube que ninguém poderia ir comigo. Estava com muita vontade de tomar aquele sorvete, mas não queria tomá-lo sozinha - afinal, quem anda sozinho é por que não tem amigos de verdade, e eu tenho milhões de amigos de verdade.
Porém, depois de tanto pensar e pensar, eu decidi ir sozinha tomar o meu sorvete. Talvez, depois que eu acabasse eu passaria na casa de uma amiga que mora perto do parque.
Quando cheguei lá, comprei o meu sorvete e o dono da barraquinha e começamos a conversar. Ele era um senhor muito simpático, velhinho, gordinho, careca e fofinho. Me perguntou de onde vinha e para onde ia, e eu lhe expliquei "venho da minha casa, e estou indo passar na casa de uma amiga. Decidi parar para tomar um sorvete, já que teria que passar aqui perto, de um jeito ou de outro." Conversamos por um tempo e eu gostei tanto dele que comprei um segundo sorvete.
(Pois é leitor. Agora eu preciso contar para você o que foi que eu vi. E eu peço desculpas por isso, por ter que lhe causar este tipo de sofrimento, mas é que eu preciso que alguém entenda a minha dor, já que os meus amigos não querem nem tentar. Então, prepare-se, e eu peço que me perdoe pela cena que vou descrever agora.)
Ao comprar meu segundo sorvete, percebi que não tinha mais dinheiro trocado na carteira. Então perguntei para aquele senhor se ele poderia me trocar o dinheiro. Ele pegou a nota que eu segurava da minha mão, e procurou por trocados na sua pochete.
Foi então que aconteceu. Ele, tão inocente e mas tão malvado, fez a pior coisa que poderia ter feito na frente de uma dama como eu.
Ele - simplesmente - cutucou o nariz e - com a mesma mão - me deu o troco que eu precisava.

domingo, 17 de agosto de 2008

Retrato de um Sábado

Era sábado de manhã, mãe e filha sentadas no sofá comendo cereal e vendo televisão. A mãe, de repente, olha para o céu fora da janela e diz "Que dia lindo!" A filha, com a boca cheia de cereal e sem desviar os olhos da televisão responde "Não, não. Está muito quente." A mãe, um pouco decepcionada volta a olhar para a TV, dá mais uma colherada de seu cereal e não fala mais nada.
Saem para almoçar, e a mãe muito feliz, comenta "Hoje a comida está muito boa." A filha faz uma cara de nojo e retruca "Está muito salgada."
Depois do almoço vão para o cinema, vêem um filme que a mãe acha maravilhoso, mas que a filha acha sem graça.
Estão no carro voltando para casa, a mãe olha para o pôr-do-sol e fala "Olha que lindo este pôr-do-sol." A filha, com os braços cruzados em cima da barriga, comenta mal-humorada "Ah sim, essas nuvens escuras e essas buzinas escandalosas são maravilhosas."
Chegam em casa, sentam no sofá para ver televisão, e a mãe acaricia calmamente a cabeça de sua filha, que dorme deitada no seu colo.

sábado, 16 de agosto de 2008

A madrugada da manhã

A noite seguia como sempre
A Lua brilhava com nunca
Todas as estrelas cantavam a mesma canção

O gato ronronava tranquilo
O relógio narrava a madrugada
A noite seguia como nunca

Minha alma fugia enquanto eu dormia

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Para sempre Carmela - parte II

Rodolfo acordou um dia se sentindo muito bem. Para ele, naquela manhã tudo estava maravilhosamente perfeito.
A sua careca não brilhava tanto quanto no dia anterior e as suas canelas pareciam um pouco mais grossas. Seu hálito não parecia estar tão ruim, e de repente as flores pareciam graciosas.
Realmente, naquele dia tudo estava lindo. Principalmente Carmela. Naquela manhã, Carmela estava ainda mais linda do que em qualquer outro dia.
Tinha os cabelos loiros presos em uma longa trança, e seu vestido azul claro estava sujo de terra. Pingava suor enquanto regava as plantas no jardim, e até o sangue que saiu do seu joelho quando tropeçou na mangueira estava mais bonito naquele dia.
Após ter caçado o seu almoço, e enquanto tentava limpar o enorme animal, Rodolfo considerou a possibilidade de ir conversar com ela naquela tarde. Rodolfo era apaixonado por Carmela a muitos anos e achava que devia aproveitar a sua beleza temporária para conquistá-la. Rodolfo também pensou como faria isso, e não conseguindo pensar em nada bom o bastante, pensou em como tudo seria se ele conseguisse, afinal, conquistá-la. Mas depois pensou em como ficaria triste quando ela descobrisse do seu medo de relacionamentos, e quando aquele relacionamento dos sonhos acabasse. Mas, para se animar, pensou como ele ia conseguir superar toda aquela tristeza com a garota que ele conheceria no bar. Então pensou em como se sentiria culpado com isso, e como ia sofrer.
Pensou tanto que quase cortou o dedo fora.
Após ter almoçado a sua caça - e depois de escovar os seus dentes pela primeira vez em nove anos - Rodolfo foi conversar na janela com Carmela. Quer dizer, quando ele se aproximou da janela, ela fugiu, entrando em sua casa e indo procurar a espingarda de seu falecido pai.
(Rodolfo, há muitos anos atrás, tentou morder o namorado que Carmela namorava na época, não por ciumes, mas por pura falta do que fazer. Carmela tem medo de Rodolfo até hoje.)
Um pouco decepcionado, Rodolfo foi atrás dela, batendo na porta gentilmente, e pedindo-lhe atenção. Carmela não abriu a porta, mas espiou pelo olho mágico.
Conversaram um pouco sobre o tempo. Carmela achava que ia chover, e Rodolfo explicou-lhe que não, pois as nuvens estavam muito bonitas. É claro que quando Rodolfo terminou a sua explicação, um trovão encheu os ouvidos de todos da vizinhança.
Carmela achou tudo aquilo bonitinho, e disse-lhe que estava feliz em ver que tinha mudado.
Rodolfo ficou tão feliz em ouvir aquilo, que pediu sua mão em casamento.
Carmela, que hesitou em recusar, falou-lhe que eles só se casariam quando ela perdesse total noção do que é bom e do que é ruim - coisa que nunca aconteceria - e que quando ele aprendesse a amar uma joaninha sequer, ela poderia considerar em conversar com ele na janela.
Rodolfo foi embora, direto para a floresta, onde pegou um esquilo para chamar de seu. O pobre esquilo fofinho acabou sendo amado por Rodolfo, que, mesmo com implante de cabelo, não conseguiu conquistar o coração de sua para sempre amada, Carmela.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Arco-íris no olhar

A caçadora de arco-íris estava procurando pelo arco-íris noturno perfeito.
Procurou por todos os lados, nas noites estreladas ou vazias, com a lua cheia ou minguante. Nunca perdeu a esperança, mas nunca conseguiu encontrar nenhum.
Todos ao seu redor a encorajavam, jurando com promessas longas que ela ainda encontraria o tal arco-íris noturno, incentivando-a a continuar a busca sem sentido. Todas as pessoas menos uma, sua melhor amiga.
Sua melhor amiga sempre tentava fazer com que parasse com essa procura sem sentido, e que recobrasse o juízo.
Uma noite, estavam discutindo no quintal, com a lua acesa no céu escuro. Foi então que a caçadora de arco-íris percebeu no olhar da melhor amiga algo que nunca tinha percebido antes. Algo quente, estranho, diferente.
Foi então, que a caçadora de arco-íris encontrou no olhar de sua melhor amiga, o que sempre procurou.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Para sempre Carmela - parte I

Ele era a única coisa que ela desprezava. Ela era única coisa que ele não odiava.
A borboleta azul estava pousada na janela, batendo as asas delicadamente e irritando Rodolfo profundamente. As flores que nasciam no jardim, mostrando a beleza da primavera, estavam sendo preparadas para serem queimadas da forma mais brutal e desumana que se pode imaginar. Os passarinhos, com seus cantos relaxantes, eram expulsos com pedras e balinhas de chumbo.
Rodolfo era um homem grande - não alto, mas grande. Feio até não poder mais, podia ser descrito como a própria figura da besta. Era grande, fedido e burro. Rodolfo era careca, mas tinha uma barba duvidosa. Sua barriga era grande e chamativa e suas canelas, finas e confusas.
Rodolfo odiava tudo. Tudo e todos. Não entendia a razão da existência de muitas coisas, entre elas a natureza, a água e os animais. Ele não gostava muito das mulheres e crianças, ou dos velhos, ou dos homens.
Rodolfo era muito crítico, egoísta e um pouco ignorante.
Mas Rodolfo guardava um segredo muito bem guardado embaixo de toda aquela gordura e maldade, e por mais bem disfarçado que fosse, todos sabiam que ele gostava um pouquinho de Carmela, a filha da vizinha.
Ah, Carmela!
Uma miragem, musa, deusa, perfeição. Parecia uma princesa, de tão bela que era. E como era gentil! Cantava com os pássaros todas as manhãs, cuidava dos insetos machucados e adorava todos os seus mamíferos de estimação - que, só para constar, eram muitos.
Rodolfo vivia sua vida muito bem, de acordo com os padrões que ele mesmo estabeleceu. Ele acordava tarde porque queria, ele almoçava fritura porque gostava, ele atirava nos animais porque isso o acalmava. Era assim que ele passava os seus dias, enquanto Carmela acordava cedinho só para ver o pôr-do-sol, almoçava verduras recém-colhidas das horta e plantava flores coloridas e cheirosas no jardim.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Te prometo

A arte de saber querer me encanta.
Talvez tudo me encante.
Talvez queira nada.
Talvez eu não saiba tudo,
mas na madrugada eu me descubro.

A madrugada - ah! A madrugada
é um caso perdido.
Me mostra, então, o sentido da noite
pois o da tarde já conheço.

Sonhos, covardia, borboletas
Me mostra a grande diferença
Que eu te mostro a razão do amanhã

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Ser

Tenho medo de me conhecer por inteiro. Tenho medo do resultado. Pode ser que eu seja uma pessoa muito boa, muito ruim, ou um nada.O que me dá mais medo é saber que as minhas chances de ser nada são iguais as minhas chances de ser algo bom.

No ônibus velho e barulhento éramos ao todo seis. O motorista, concentrado em uma distração, o cobrador que dormia e eu que observava as outras três pessoas.
Havia uma moça de unhas vermelhas e cumpridas. Mãos entrelaçadas sob as pernas, olhava para o céu escuro pela janela. Respirava ofegante. Sentava-se a minha direita umas três fileiras para frente.
Um homem deitado no banco, logo atrás da moça. Tinha a cabeça encostada na janela e o pé pendurado da perna apoiada. O pé se mexia de acordo com o sacolejo do ônibus. Os braços cruzados sob o peito. Estava encolhido, como se estivesse com frio. Olhava para o chão no meio do corredor do ônibus. Mal parecia respirar.
Logo atrás dele, do meu lado, mas do outro lado do corredor, havia uma senhora. Com uma simplicidade elegante, olhava para frente apenas, talvez sem ver nada. Segurava nas mãos a alça da bolsa e um terço de madeira. Sua serenidade assustava.
Já eram altas horas da noite, e o ônibus continuava seguindo, balangando os pensamentos daquele povo. Só queríamos chegar em casa. Foi um passeio longo aquele. Vínhamos de longe. Os quatro subiram no mesmo ponto, decididos. Isso já fazia muito tempo. Horas, eternidades. Vimos pessoas entrarem e saírem, subirem e descerem. Juntos ou sozinhos. Mas nós ficamos ali.
Sim, ficamos.
Já àquele ponto éramos uma família. Ou poderíamos ser, se nos desligássemos dos nossos pensamentos por um instante sequer. Mas e eles, o que será que pensavam? Eu sabia no que pensava, e gostava. Mas eles?
Será que pensavam na vida? Não consigo entender porque se pensa na vida. Não é como se achará alguma solução para qualquer coisa. São apenas devaneios sem sentido. Nem pensamos nas coisas boas da vida. Por que será? Pode ser porque estas são usadas e desperdiçadas assim que se atiram à nossa frente. As coisas boas são modos de se sair da depressão. Ou modos de se entrar na solidão, ignorância, confiança.
Com as coisas ruins aprendemos. Aprendemos a não sentir, para não sofrer. As coisas boas acabam todo esse aprendizado. Coisas boas não servem para nada.
A noite estava bonita, a lua crescente. Havia algumas estrelas no céu. Olhei para as unhas da moça. Vermelhas, longas e bonitas. Então vi as minhas curtas e sujas. Olhei os sapatos do moço, sujos, velhos, cheios de buracos. Então vi os meus limpos, novos e inteiros. Olhei para a senhora e vi um auto controle, uma serenidade absurda. Então senti a inveja subindo pelo meu corpo, como uma onda violenta.
O ônibus balançava de um lado para o outro. Cantava um pouco também.
Perto do meu ponto levantei-me e apertei o botão. Os outros três também. Descemos no mesmo ponto e caminhamos para a mesmo direção.
A senhora olhava para frente, concentrada, porém em qualquer outro lugar. O moço chutava tudo que lhe cruzava o caminho. A moça caminhava calmamente olhando para baixo. Equilibrava-se inconsciente nos saltos altos que pisavam fortemente na calçada quebrada.
Parei na frente da minha casa. Abri o portão e entramos. Eu, a moça, a senhora e o moço. O moço fechou o portão atrás de si.
Ouvi o despertador tocar.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

A Lua no Lago

A noite estava escura e ele se sentia sozinho. O reflexo da Lua grande e redonda brilhava no lago vazio. A fogueira estavala com as suas últimas labaredas e o vento cantava suavemente. Seus cabelos e cobertor que o mantia quente balançavam, como em uma dança estranha. Estava tudo muito quieto e mesmo assim, barulhento.
Olhava para cima e só conseguia ver as estrelas que brilhavam no céu escuro, como um sopro de purpurina em uma cartolina preta. A Lua estampada nas águas do lago não existia no céu.
Pegou o violão que estava deitado no chão perto de seus pés e dedilhou um acorde. A musica dos insetos era muito mais bonita. Jogou o violão no fogo e respirou fundo. "Por que acabei de jogar o violão do meu avô no fogo?" pensou cansado, mas como não conseguiu achar uma boa resposta, voltou a olhar a Lua no lago.
Nunca tinha visto reflexo mais bonito. Era a Lua mais estranha que já tinha visto antes. Redonda, brilhante e misteriosa. Perfeita dançarina nas águas escuras.
Pegou alguns gravetos que estavam ao seu alcance e jogou-os no fogo também. Agora as labaredas eram altas e laranjas. "Estou cansado de abóboras" disse em voz alta, mesmo sem saber por quê.
Olhou para atrás, mas só conseguiu ver as sombras das árvores. A Lua do lago ainda era a coisa mais bonita daquele lugar. "Não posso esquecer de colher aqueles morangos que nasceram na macieira" lembrou de repente, com um certo nervosismo.
A Lua no lago continuava linda. O céu continuava estrelado. Tudo era igual o tempo todo.
Tirou os sapatos e jogou-os na fogueira, junto com o cobertor. Encarava a Lua no Lago com uma paixão que nunca tinha sentido antes. A Lua era a melhor coisa que já havia lhe acontecido.
Entrou no lago com deixando a água chegar a altura de seu umbigo, pescou um peixinho prateado que passava por lá. Segurou-o bem forte com as duas mãos até que ele parasse de se debater.
Olhou para a Lua mais uma vez, mas desta vez ela não estava perfeita. Ela estava estragada. Havia um pedaço faltando, um pedaço em forma de peixinho

sábado, 2 de agosto de 2008

Echarpe vermelha

E lá estava eu. Naquela noite escura e fria, na ponta da ladeira, na frente do meu carro, que estalava de vez em quando para estragar o silêncio que me envolvia. Olhava para as estrelas, mas não achava o que procurava. A grande resposta que esperava. Lá na frente à cidade. A mais linda vista. A cidade toda iluminada, os prédios, os carros, as pessoas que continuavam com suas vidas, que cumpriam a rotina sem hesitar, seres humanos, com leves sentimentos, nada que se possa chamar de verdadeiro.

A vida passando diante de meus olhos. E eu lá. Sem fazer nada. Somente, tentando pensar em algo, tentando me concentrar. Mas era muito difícil. Há certas coisas que te atordoam para sempre, que você não consegue tirar da sua cabeça. O problema é que eu não conseguia lembrar o que tinha se passado. Olhava no meu relógio a cada 5 minutos, mas não conseguia lembrar o horário. Só conseguia lembrar que era uma quinta-feira, e que tinha acordado para ir trabalhar, mas algo aconteceu e eu acabei indo para a casa de Alice.

Fiquei lá como petrificada. Uma buzina distante me acordou. Lembrei porque estava lá o que tinha feito de tão horrível que não conseguia nem pensar. Eu tinha feito uma coisa tão terrível que nenhum ser humano seria capaz de fazer. Se é que eu poderia ser chamada de ser humano.

Tinha ido para a casa de Alice para pegar a minha echarpe vermelha que tinha deixado lá no dia anterior. Estava saindo quando ouvi um grito vindo de dentro da casa. Vi, então, um homem todo de preto, Alice no chão, no pé do sofá, com sangue nas mãos e no rosto. Percebi uma arma no chão perto de mim. Sem ele notar a minha presença, e sem pensar no que fazer, pequei a arma e puxei o gatilho. O homem caiu no chão com um berro. Aliança no dedo, garrafa na outra mão. Seu rosto me era familiar, mas estava atordoada, e não conseguia lembrar quem era. Era o marido de Alice. Bêbado, e na minha frente morrendo. Mas, o pior detalhe eu guardei pro final, a coisa mais assustadora da historia inteira. Alice, meu querido leitor, era minha cunhada.

(Este foi o primeiro texto que escrevi por vontade própria, e que gerou todos os outros que estão dentro e fora deste blog)

quinta-feira, 31 de julho de 2008

Pipoca com Café

Era uma amizade que - para as duas - fazia muito sentido. As duas juntas formavam uma combinação perfeita, como pipoca e café - o tipo de combinação que te arrepia, mas que depois de juntos, mesmo sendo horríveis, são inseparáveis. Do mesmo jeito que pipoca com café lhe causa ânsia, essas duas lhe causam sentimentos inexplicáveis.
Se conheceram quando crianças, ainda pequenas demais para escolher as próprias amizades. Foram ditas para se odiarem com todo os seus corações moles, e foi isso que fizeram. Brigaram todos os dias durante uns três anos, brigas bobas que duravam horas e horas e que ainda assim não acabavam, só entravam em recesso até a manhã seguinte, quando, com o fôlego recuperado, recomeçariam tudo. No começo era até divertido para aqueles que assistiam, já que as duas eram entupidas de sarcasmo e maldade até o topo, mas depois de três anos começaram a perder a graça. Quando as duas perceberam que não tinham mais público ou energia, decidiram começar a simplesmente se ignorar.
Se ignoraram por algumas semanas. Foram semanas tristes aquelas... Sem assunto com as amigas, sem babado no recreio, sem sensação de superioridade. Foi então que perceberam que, sem querer, se tornaram completamente dependentes daquela relação de ódio e "amor não assumido".
Como as duas eram extremamente orgulhosas e, se me permite, burras, demoraram mais ou menos um ano até tomarem coragem para começarem a conversar.
Quando começaram também não pararam.
Julia e Ana viraram melhores amigas, mas no começo não era uma amizade muito fácil de se administrar. Elas eram muito diferentes, em um jeito muito parecido de ser. Mas ao longo dos anos, elas se concertaram sem mesmo perceber.
Duvido que Ana tenha percebido o quanto de paciência precisou ter até Julia aprender o significado dessa palavra. E como usá-la. E não acho que Julia saiba como foi compreensível com Ana, que ás vezes só precisava que alguém lhe falasse o que queria ouvir, ao invés da crua verdade que estava-lhe sempre pronta na ponta da língua.
As duas aprenderam a se entender.
Depois de alguns anos juntas, Julia já estava acostumada com os desgostos bizarros de Ana, assim como Ana já não se importava mais com as piadas horríveis de Julia - ou com o seu mal-humor ocasional. De vez enquando até ria.
Não tinham gostos parecidos para a música, ou cinema, ou comida, ou livros, ou roupas. Mas sempre conseguiram se entender, respeitando a outra com um tipo de respeito tortuoso, que apenas as duas entendiam e aceitavam sem problemas.
Uma participou muito do crescimento da outra. Durante toda a adolescência ficaram juntas, durante as notas boas e ruins, interesses confusos, problemas de família, crises de identidade e alguns finais de semana.
Adoravam se divertir a custa dos outros. Não era preciso falar nada, com apenas um olhar malvado elas se entendiam. Elas faziam bastante disso, mesmo quando o comentário não era maldoso. O senso de humor delas era tão peculiar e parecido, que eram as únicas a entenderem as piadas que não faziam.
Como passavam muito tempo juntas, acabaram ficando muito parecidas até no jeito que tratavam os outros com a ironia delicada que compartilhavam. Como essa ironia era uma grande parte daquilo que eram, viviam sendo confundidas. Seus nomes eram trocados e misturados e confundidos o tempo todo, afirmando qualquer tipo de hipótese que tinham sobre as suas similaridades.
Ana era a única que conseguia confortar Julia.
Julia gostava de pensar que era aquela que sabia ouvir Ana.
Então elas cresceram. Juntas.
E nada na amizade delas mudou.
Continuam, até hoje - e espero que para sempre - a mesma combinação confusa e perfeita, como pipoca com café.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Para Amora - ao fim da inocência

Amora, qual é o seu problema? Não sabe o quer do dia, não sabe o que quer da noite. Vaga longe, sozinha pela madrugada vazia, querendo apenas um coração para chamar de seu?
Amora, amora. Me deixou sozinha esperando pela estrela cadente, enquanto foi procurar o sentido da Lua. Por acaso não sabia que é o mesmo sentido do Sol?
As minhas estrelas, Amora, nunca foram tão lindas. Brilham sem saber por quê. Mas você não pode vê-las, pode?
Sim Amora, meu mundo funciona sem você. Mas nada é igual. Nada é melhor.
Saiba, levou um pedaço de mim quando partiu, mas não... Não o quero de volta.
Sou grande agora.

terça-feira, 29 de julho de 2008

História de um João Inexistente

Eu sou João, e eu existo sim. Eu sei que é bem confusa essa história de que um cara que existe escreve uma história sobre alguém que não existe, sendo que esse alguém sou eu mesmo. Sem metáforas, eu não existo mesmo. Mas a história de como eu virei um inexistente em uma longa tarde de verão é simples, e pode ser facilmente contada.
(Alguns detalhes importantes para a minha inexistência são que eu tenho trinta e quatro anos e moro com a minha mãe. Não trabalho, já que a minha mãe me sustenta fazendo salgadinhos de festa para encomenda. Nunca pus o pé na rua, porque sempre tive preguiça e nem um pouco de curiosidade, e minha mãe nunca me forçou a sair de casa. Com isso pode-se concluir que não tenho amigos, e que fui educado em casa com um professor particular.
Tenho muita preguiça de fazer coisas que julgo desnecessárias, então não as faço. Por isso não conheço o chão embaixo do sofá , não abro a geladeira desde os meus cinco anos e não leio jornal.
Tenho manias estranhas e as pessoas me acham esquisito.)
Desde pequeno eu gosto muito de leite com chocolate. Eu sei que todas as crianças gostam, mas eu tenho uma relação especial com leite com chocolate. É mais do que apreciação, é uma paixão verdadeira, quase uma obsessão.
Para mim, leite com chocolate é mais do que uma bebida, mais do que uma refeição. É uma invenção divina, a água dos deuses. A mistura de leite integral com as duas colheres e meia de sopa de chocolate em pó feita dentro da caneca da minha falecida avó, mexida com uma colher de alumínio, com movimentos anti-horários apenas, que a minha mãe faz assim que eu toco o sininho de prata é tão harmoniosa que me faz lacrimejar! (Porém, se não for feito assim é só uma gororoba qualquer.)
Um dia eu acordei com a estranha vontade de abrir a geladeira - e foi aí que tudo começou. Assim que abri a porta pesada, me deparei com uma caixa de leite aberta, e nela estava escrito "Semi-desnatado". E ainda haviam mais oito caixas iguais, fechadas, quietas na prateleira de baixo. Meu coração quase parou.
Corri para o quarto, onde encontrei minha mãe consertando forros de almofadas. Contei do ocorrido e ela ficou mais assustada com o fato de que eu tinha aberto a geladeira do que com o que estava escrito na caixa de leite. Pelo menos foi o que ela me disse, acompanhados de "e é claro que está escrito 'semi-desnatado'. É o tipo de leite que eu compro desde que você começou a falar. Quem mandou ficar vinte e nove anos sem abrir a geladeira?"
Percebi que ela estava falando sério. Com um pouquinho de ironia, mas sério de verdade. Foi então que ouvi um pedaço de mim se soltar do meu corpo e cair no chão, quebrando-se em milhares pedacinhos. Parte de minha história morreu naquele momento. Como assim? Quer dizer que a minha bebida maravilhosa de leite integral com chocolate em pó na verdade era de leite semi-desnatado? Que nojo de mim mesmo.
Respirei fundo, segurei minhas lágrimas e decidi sair de casa (afinal, antes tarde do que nunca, né) e ir até a "loja da esquina", onde minha mãe costumava ir todas as semanas me comprar bala de morango.
Marchei para fora do quarto e pela primeira vez na minha triste vida eu passei pelo portão de entrada da minha casa. Devo confessar que tive um pouco de medo. Virei a direita e andei determinado até a esquina, mas tudo que encontrei lá foi uma casa parecida com a minha, e que não era a "loja da esquina".
Juro que ouvi outro pedaço da minha alma se quebrando, virando pó.
Quer dizer que a "loja da esquina" fica na esquina da esquerda! E em toda a minha vida eu imaginei que ela ficava na direita. Nos meu sonhos e fantasias minha mãe sempre virava a direita. O tom de voz que ela a usava para me contar sobre a "loja da esquina" me apontava à esquina da direita.
Mas, sem problema. Só mais uma coisa que me caracterizava como "João, o existente" que desapareceu, mas como já disse, sem problemas. É só me controlar bastante, que as lágrimas não caem dos meus olhos.
Cruzei o quarteirão, a procura da "esquina da esquerda" e da "loja da esquina", que aparentemente ficavam no mesmo lugar.
A "loja da esquina" era um lugar muito simpático. Um grande balcão, várias prateleiras com várias coisas estranhas e coloridas. Atrás do balcão havia um homem barrigudo, com algo que parecia um lápis atrás de sua orelha, que conversava com um magrinho mal-humorado que sentava em um banquinho de madeira do seu lado, com os braços cruzados e os olhos fixos no chão.
Me aproximei do balcão, me apresentei como João, falei que era filho da minha mãe e que gostaria de um saquinho de bala de morango. E por favor. O barrigudo e o magrinho se entre olharam e esboçaram um sorrisinho como se soubessem algo sobre mim que eu não sabia.
"Sim, eu sei quem é a sua mãe, mas nós não vendemos bala de morango". Com essa revelação não ouvi nada se quebrar. Na verdade, só fiquei confuso. Da onde vem a bala que eu venho comendo durante todos esses anos?
"Tem bala do que então?"
"Nós temos de framboesa, e é desse tipo que a sua mãe compra para você toda semana, desde os seus quatro anos." O mal-humorado me disse com desprezo na sua voz.
Então eu ouvi mais um pedaço da minha alma cair no chão e se despedaçar. E ao passar do dia ia ficando cada vez mais inexistente. E surpreso.
Quer dizer que por toda a minha vida comi bala de framboesa achando que era de morango, bebi leite semi-desnatado achando que era integral, virava direita ao invés da esquerda, acreditava em A quando era B! Basicamente, vivi trinta e quatro anos de mentiras! E depois de tudo, o que me caracterizava como João... Simplesmente não existe.
Voltei para casa comendo minhas balas de framboesa que eu comprei na "loja da esquina da esquerda" pronto para enfrentar a minha mãe. Estava pronto para brigar com ela! Afinal, como se pode dizer para uma criança de quatro anos que ela não precisa ir para a escola se está com medo dos meninos - mais novos - que roubaram o lanche dela.
Ou então concordar com uma criança que não quer mais sair da própria casa, porque ficou traumatizada quando pisou no cocô de cachorro que não estava fazendo nenhum mal a ninguém.
Bati o portão da entrada, entrei batendo o pé dentro de casa. Abri a porta do quarto da minha mãe com toda a vontade que tive. Ela estava sentada na cadeira perto da janela, bordando. Parecida tão inofensiva.
Amoleci um pouco. Quase fiquei quieto, mas lembrei da pessoa que aquela mulher havia criado e que não existia mais. Lembrei de como eu tinha acabado de descobrir como ela era malvada.
Então eu gritei com ela.

Fui dormir naquela noite sabendo que abraço não mata e que sou adotado.

segunda-feira, 28 de julho de 2008

Quando o céu se abriu
Saiu de dentro um sorriso,
com o sorriso uma verdade,
com a verdade uma menina.

Menina pequena
com os dentes tortos
Sorriso aberto,
coração coberto.

Abriu-me a mão
deu-me uma estrela
uma risada abafada
uma chave entortada

sábado, 26 de julho de 2008

O gato, o rato e a morte

Enquanto encarava os azulejos brancos, mas encardidos da parede em minha frente, pensava cada vez mais sobre Estella. Estava naquela posição há algum tempo e a cadeira de plástico rangia toda vez que batia o pé no chão Já era conhecida lá no hospital. Eu era a visitante do quarto 134, que aparecia todos os sábados vinte minutos antes do horário de visitas começar, só para poder sentar na mesma cadeira, na mesma posição, ouvir os mesmos barulhos e encarar a mesma parede suja.

Estella era paciente terminal já há algum tempo. A moribunda mais insistente que já conheci. Tinha um desejo incontrolável pela vida, e nunca desistia do sonho que, um dia, ia por os pés na rua de novo, mesmo sabendo que só vivia por estar ligada a máquinas. Estella era uma moça jovem, não merecia estar naquela posição, mas já estávamos conformados com a idéia.

Entrei no quarto 134 e lá estava ela. Encarando o teto, repetindo algo como "meu gato adoraria pegar essas andorinhas verdes". Sentei- me na poltrona, como de costume.

"Já fiquei sabendo" falei depois de algum tempo observando-a "finalmente..."
"É" ela respondeu com naturalidade sem tirar os olhos do teto "não aguento mais esses bichos daqui. Eles querem que eu vá embora, ficam me rodeando. Eu já estou aqui há muito tempo mesmo. Ficam me trazendo contratos para assinar, mas eu tinha prometido a mim mesma que só assinaria quando me trouxessem um que não estivesse amassado. Mas eu desisti. Ia demorar muito até o tal contrato vir, eles não tomam cuidado. Andorinhas! Contei-te do rato que apareceu em casa?"disse mudando de assunto.
"Não, que rato?"
"Entrou um rato na minha casa, mas ninguém conseguiu matar, nem mesmo Fofucho"

Depois disso veio um silêncio constrangedor, longo, denso e de um modo muito estranho, confortante. Após muito tempo Estella suspirou.

"Vão fazê-lo amanhã. Num domingo, meu dia favorito. Fui eu que escolhi a data."
"Legal, eu acho" estava sem respostas. Não sabia o que falar para alguém prestes a se despedir do mundo.

"É. Isso não é vida. Fiquei tempo demais sonhando." afirmou sem muita certeza. Eu queria concordar, mas achei melhor não. Então não disse nada. "Me faz um favor?" disse depois de uma longa pausa, "faça essas coisas para mim? Mas só depois da uma hora da tarde de amanhã." Pegou um papelzinho que estava embaixo do travesseiro e me entregou. Eu não disse nada, e só olhei o papel alguns segundo depois. "Não precisa me responder agora."

Ficamos lá por muito tempo. Conversamos bastante e percebi que as pessoas não mudam mesmo na véspera de suas mortes. Contou-me de Fofucho seu gato, o amor de sua vida e de como ela estava infeliz, sozinha. Assistimos a chuva cair na janela silenciosamente e segurei a sua mão, até que ela adormeceu.

Peguei um papel e uma caneta na minha bolsa e escrevi a resposta para o seu favor. "Adoto seu gato, mato seu rato e lamento muito a sua morte". Dei-lhe um beijo na testa, pus o papel perto do travesseiro. "Vou sentir falta de vir aqui te visitar. Meu sábados não vão mais ter sentido" era a única coisa que conseguia pensar. Saí do quarto, fechei a porta e não olhei mais para trás.

terça-feira, 22 de julho de 2008

Um lembrete para uma aquela

Naufel, Faufel, Faufinha, Naufinha, Nau, Fau, Marina, Narina, Nini, Má, Mari, Faufanha, Faufuia, Faufete.

Não importa como, você sempre é a mesma besteira.

Não sei se eu já te disse isso o sulficiente... mas eu te agradeço por tudo!

Para quem entende

As amoras nunca pareceram tão bonitas no alto das árvores do bosque. O luar cobre as formigas que sonham com o novo dia. A madrugada está fria e sem prazer. A lua preguiçosa que não se apressa em se esconder me preocupa.
Tudo me preocupa.
No escuro que me envolve, sinto frio. Me sinto mal. Me sinto estranha. Me sinto como um nada.
Vejo ao longe na minha imaginação estragada, aquilo que um dia chamei de alma.
Ela grita por socorro, mas ninguém a percebe. Tento correr para salvá-la do sofrimento, mas tudo o que consigo fazer é estragar meus sapatos.
Hoje, quando digo que não tenho mais sombra, não digo nada além da verdade. Foi-se, sugada para algum lugar além da minha compreensão.
Me perguntam por que decidi viver assim. Eu não sei responder
Estou sentada na cama e o meu troféu dorme ao meu lado.
Sinto uma dor no peito e percebo que sangro verde.
Meu troféu ronca enquanto eu morro

sábado, 19 de julho de 2008

O homem que tinha medo de peixes

Havia um homem que tinha medo de peixes. Seu nome era Tag. Tag não sabia por que tinha medo de peixes. A sua cor indescritível, sua textura nojenta, seus olhos vermelhos de peixe morto - assim como seus olhos arregalados de peixe vivo - ou o seu horrível, horrível cheiro eram apenas pontos bônus na sua lista de "coisas assustadoras".
Tag não tinha amigos, inimigos ou namorada. Sua família - só - não se importava o bastante. Trabalhava na biblioteca local, mas estava pensando em se demitir - ele não gostava de sua chefe, " aquela mulher ridícula, que não sabe nem passar batom!"
Tag era um cara solitário.
Mas na sua casa grande demais para apenas uma pessoa, tinha um gato gordo, ruivo e cego de um olho. O seu nome era Hamster. Oh! Tag realmente amava Hamster! Ele o encontrou um dia, voltando do mercado. Ele estava perdido e sozinho. Foi amor a primeira vista, quer dizer, Tag amou o gato, e o gato amou a garrafa de leite que Tag estava carregando. (E se por acaso você está se perguntando, Tag pensou sim em comprar um hamster de verdade - bem antes dele conhecer Hamster, o gato - ou até mesmo um coelho, mas aquela coisa da gaiola o assustou um pouquinho, afinal, "o que é uma gaiola se não um aquário com buracos?".) Hamster, o gato, realmente achava que era uma hamster, o rato, e adorava correr na rodinha que Tag construiu para ele.
Tag era um cara diferente.
O cabelo de Tag combinava com o pelo de seu gato. Seus dentes, pés e nariz eram grandes demais para o seu corpo magrinho. A pele de seu rosto era coberta de espinhas grandes e vermelhas.
Tag era um cara estranho.
Quando Tag viu um peixe pela primeira vez na sua vida, tinha quatro anos. Ele chorou, ele gritou, ele ficou vermelho e ele desmaiou. Já na segunda tinha quase sete anos e ele chorou e ele gritou. Ele gritou até os seus pulmões desistirem de funcionar. Na terceira ele tinha nove anos, e ele gritou muito. Um grito doentio. Mas agora ele não gritava mais. Ou chorava. Ele só desmaiava. O que era bem mais silencioso.
Tag era um cara problemático.
Mas Tag gostava de sua vida. Ele sempre achou que seus pais podiam ter feito um trabalho melhor com o seu nome, mas isso era okay. Ele achava que a sua rotina fixa era confortável. E, tirando aquele negócio do peixe, Tag achava que era uma pessoa muito normal.
Ele não era.
Mas realmente achava que era.
Em um lindo dia, Tag chegou em casa as 6:18 pm, como normalmente chegava. Encontrou Hamster deitado de barriga para cima perto de sua rodinha, como normalmente encontrava. Ele tinha tido um dia normal. Tudo estava normal. Por isso Tag sentou em seu sofá e chorou. Como normalmente fazia.
Tag queria que tudo fosse perfeito, mas normal era o máximo que conseguia. Então ele chorava todos os dias. Mas ele era "feliz, deprimido não!", porque chorar sozinho no escuro todo santo dia, entre 6:20 e 6:24 pm, sentado ao lado de seu gato com problemas de identidade chamado Hamster, era comum. Não alcançar perfeição era comum também, e se era comum, Tag estava feliz.
Mas naquele dia, algo tinha mudado. Tudo estava normal e ele tinha acabado de chorar, então Tag percebeu que não queria mais aquilo. Tag queria mudar, e estava pronto para isso.
"Sem mais normalidades!"
No dia seguinte, Tag acordou cedo e foi para a loja de animais. Foi uma caminhada corajosa feita por um homem corajoso! O vento frio passando através de suas roupas, suas mãos congelando dentro dos bolsos de sua jaqueta, seu lábio inferior ficando roxo por causa do frio. E o sol mais quente da história nas suas costas. Tag exagerava bastante quando sob pressão. " É só comprar a comida do Hamster, olhar para um peixe ou dois, não desmaiar e ir trabalhar. Só isso! Eu consigo fazer isso." Ele sabia que podia fazer isso - mesmo achando que não podia. Ele achava que tinha o poder.
Ele entrou na loja como alguém normal - e esse era bom - pegou uma lata de comida de gato e caminhou até a "Parede de Aquários". A "Parede de Aquários" era completamente coberta com todos os tipos de aquários, com todos os tipos de peixes dentro deles. A mão de Tag suava, sua testa estava molhada, mas ele sabia que ele podia!
Ele parou na frente da "Parede de Aquários" com seus olhos fechados. Respirou fundo, contou até cinco, jurou para si mesmo que podia e abriu os olhos.
Tag não gostou do que viu. Ele pensou que sempre soube que nunca poderia fazer aquilo. Sua garganta fechou e a sua cara ficou vermelha. Ele não conseguia respirar, mas não ia fechar os olhos. Ele achou que talvez pudesse ter o poder para fazer aquilo. Afinal, por que não?
Tag contou até trinta com os seus olhos arregalados encarando a "Parede de Aquários", pagou pela comida do Hamster e foi para casa.
Aquela foi uma boa caminhada! O sol brilhava, as crianças brincavam! E ele tinha acabado de fazer aquilo. Agora Tag sabia que nunca teve dúvidas sobre a sua capacidade de fazer algo daquele tipo!
Agora ia para casa, dar a comida para o Hamster, ir até o seu trabalho e dizer para a sua chefe que ela era ridícula. E então ele ia se demitir, e.. e.. e ir até "um daqueles lugares nojentos onde as pessoas vão para beber - ou inalar - substâncias alcoólicas e pegar infecções por causa do pote de amendoim comunitário."
Tag não se demitiu, ou chamou a sua chefe de ridícula, pois seriam "muitas atitudes corajosas no mesmo dia". Mas ele pegou um infecção por causa do pote de amendoim comunitário.
Tag era um cara mudado.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Dança de Salão

Uma caixa de lenços. Uma caixa de lenços vazia. Foi tudo o que sobrou. De tudo. Uma caixa bem grandona, tamanho família, branca com florzinhas. Ela está vazia agora, e foi assim que as coisas acabaram.

Tudo começou quando ela me disse que não queria mais. Ela estava encostada no batente da porta do meu quarto, encarando a caixa de lenços como se quisesse queimá-la com a alma. Eu sentada na cama. A caixa ia fazendo "tec-tec" enquanto destacava a aba. As suas palavras horríveis e os meus "tec-tec". Era como uma música.
Ela terminou a sua frase enquanto, com muito esforço eu tirava o primeiro lenço da caixa. Tudo que se ouviu por um instante foi aquele barulho suave de quando se tira um lenço da caixa. Aquele barulho que parece uma onda. Uma chama cresceu em seu olhar.
 
Assoei meu nariz sem fazer barulho. Olhei para ela e disse "Por quê?". Seus olhos passaram a me encarar, mas com o mesmo fogo com que encaravam a caixa de lenço. Admito que fiquei com medo.
 
"Por que o quê?" A cara de surpresa que fazia era inédita. Ela realmente não sabia por que o quê.
"Como assim? Por que isso?" Peguei outro lenço.
"E você ainda pergunta!"
Eu sinceramente não achava nenhum absurdo querer saber por que, de uma hora para outra, ela exigia que eu parasse algo que eu não queria parar! Então eu disse isso para ela.
"Eu não vejo nenhum absurdo em querer saber por que" Peguei outro lenço.
"Você!" Seu dedo ossudo com a unha vermelha apontava em minha direção. Seus olhos queimavam com um fogo demoníaco. Ela guardou o dedo, respirou fundo e murmurou "não sabe de nada."
Aquilo me irritou muito. Quem ela pensava que era, para mandar em mim, não responder as minhas perguntas, ficar brava quando peço explicações e ainda brigar comigo! Só a minha mãe pode fazer isso. Tirei outro lenço da caixa.
"E você é incapaz."
"Do quê?" Seu olhar já era mais desafiador. Tinha os braços cruzados sobre a barriga, me olhava com raiva.
"De tudo! Você não consegue... Não sabe... Faz... Viu! Você é tão incapaz que espalha a sua incapacidade por onde vai, fazendo todos ao seu redor incapazes." Nem eu sabia mais o que estava tentando dizer, mas de acordo com a sua cara, o que saiu não foi bom. Usei outro lenço, e eles começavam a se amontoar do meu lado.
O que aconteceu depois ainda não me é claro. Houve uma longa sequência de palavrões, xingamentos, acenos, lágrimas, gritos e lenços usados.
Eu não entendi o que ela quis dizer com "E você então!" depois que listei todos os seus defeitos, contando-os nos dedos.
E eu me lembro que gritava. Muito. Não sei bem o que, mas bem alto. Ela também. Tentava gritar mais alto do que eu. Talvez vice-versa, mas não tenho certeza.
A grande gritaria acabou com um silêncio súbito. Ela encarava o teto, eu o chão. As duas limpavam o nariz vagarosamente com o lenço. As duas estavam mais leves agora, depois de terem gritado todas as mágoas de uma vida inteira.
"Eu não vou parar as aulas de dança de salão!"
Ela saiu e disse "então encontre uma nova melhor amiga."

Então usei a última folha de lenço de papel. E acabei com uma caixa de lenço. Vazia
(Ganhador do 3º lugar na Jornada Literária 2008 do Colégio Rainha da Paz, categoria Crônica)

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Essa é para as melhores amigas...

Elas eram quatro. Quatro meninas completamente diferentes umas das outras. Não se suportavam. Eram prisioneiras voluntárias de uma amizade sem sentido.
Tinham interesses completamente diferentes. Vidas com rumos distintos. Enquanto uma gostava de rosa, a outra preferia amarelo. As outras duas viviam discutindo sobre o verde e o azul. Não era uma amizade baseada em gostos parecidos, isso eu tenho certeza.
Essas melhores amigas também não compartilhavam todos os seus sentimentos e segredos. Tampouco tinham o que conversar. Deixavam de contar segredos com medo da reação das outras amigas. A falta de compreensão mata!
Raramente estavam todas juntas. Era muito difícil achar datas e programas para a felicidade de todas.
Até mesmo nas amizades paralelas elas não concordavam. Era muito difícil achar uma pessoa que todas gostassem igualmente.
Mas mesmo assim, juravam amizade eterna, e - o mais importante - acreditavam nessas juras. Sabiam que não era impossível viver uma vida inteira com as mesmas melhores amigas. É um pouco difícil, mas a amizade delas já se mostrava especial o bastante para sustentar estes sonhos.
Elas eram felizes juntas. E quando se encontravam, mesmo se brigavam, ou se desentendiam, uma delas se divertia mais do que em qualquer outro momento de sua vida.
E para esta mesma menina, as quatro tinham o exemplo de uma amizade perfeita. Elas superavam qualquer tipo de briga, ou diferença, ou insegurança. E sempre estavam prontas para apoiar umas as outras em um momento de crise.
E afinal, numa amizade não há regras, mas amor e fidelidade, e isso nós temos de sobra!
Amo vocês meninas!
(Desculpe-me pelos clichês, e obrigado pela paciência! Eu sei que eu sou um pé no saco...)

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Parecia que a minha canção favorita era sobre um sanduíche

Era uma garota muito engraçada, se você quer saber o que eu penso. Sempre passava na frente da minha janela, como quem não anda, mas desliza. Mantinha sempre o nariz empinado enquanto passeava com o seu cachorro babão para cima e para baixo, porém sua expressão era sempre muito humilde ou serena, se assim lhe serve.
Tinha cabelos laranja que brilhavam com os raios de sol do meio da tarde. Seus olhos verdes que nunca olhavam para baixo, estavam sempre parecendo procurar algo no horizonte. Sua pele clara em contraste que com os vestidos azul-marinho - estava sempre de azul marinho.
Era a coisa mais inexplicável que eu já senti.
Toda vez que ela aparecia na minha janela, eu me sentia como a pior pessoa de todos os tempos. Aqueles dez segundos em que ela passava pela minha janela eram os únicos momentos do dia em que eu tinha desejos suicidas. E mesmo que eu não olhasse para a janela enquanto ela estava passando, só de imaginar que ela estava do lado de fora, minha razão desmoronava.
Era uma perfeição malvada, aquela que ela tinha, que se espalhava por todos os lados, e me fazia querer correr até ela e roubar qualquer tipo de, de... Eu ainda não descobri o que ela tinha e que eu queria. Mas uma coisa eu lhe asseguro, eu não queria me matar por inveja.
Eu não tinha inveja do seu jardim que sempre parecia estar mais bonito, enquanto o meu apodrecia lentamente. Ou por causa do seu cabelo laranja que estava sempre tão perfeitamente arrumado em uma trança única que não se mexia enquanto ela andava. Ou por causa do seu cachorro que obedecia ao seu sussurro, ou por causa das suas roupas sempre perfeitamente engomadas, ou por causa do seu olhar que mostrava frieza e calor ao mesmo tempo, sem nenhum esforço.
Por mais descontrolada ela me fazia sentir, nada disso era o problema real.
Não.
A garota de cabelos laranja me trouxe um novo mundo, onde tudo que eu acreditava ser possível não existia. Ela literalmente acabou com o meu mundo, e toda vez que passava pela minha janela, me fazia lembrar de como eu era boba em realmente acreditar que vacas podem voar, e que tudo que elas precisam fazer para isso é pensar positivo.
Toda vez que a garota dos cabelos laranja passava pela minha janela com o seu cachorro babão, eu sentia como minha canção favorita fosse sobre um sanduíche.

No fim do outro começo

Tudo que termina é temido.
Não há exceções. O fim é doloroso, perigoso. Traz a insegurança do novo começo, do novo caminho e das novas maneiras de pensar. O fim é aquilo que acaba com todas a esperanças de consertar todos os erros do caminho já percorrido. Mas o começo - ou melhor, recomeço - é o fracasso.
Todo fim que chega traz a crua verdade sobre a incapacidade humana em acertar de primeira. E no fundo, no fundo, é isso que mais dói. A verdade clara, na nossa frente, sem vergonha de se mostrar. A verdade que traz vergonha. A vergonha que traz medo.
Mas depois de todos os finais dolorosos e incompreensíveis, há sempre um começo e um meio, que podem significar a segunda chance, o perdão pelo primeiro erro.
Mas as correções nunca são feitas.
Não.
E então quando o fim do novo começo chega, o fracasso se duplica, o medo nos persegue, e a vida, bom a vida nos assusta, já que com começos ou finais, ela está sempre a mesma - inabalável - rosa escarlate.
Então, aqui em um outro fim de um novo começo, já sabendo que a próxima sensação de fracasso se aproxima, a única coisa que posso fazer, é sentar e chorar.