domingo, 16 de agosto de 2009

O dia em que a noite não veio

Eram férias de dezembro, alguns dias antes do Natal, se não me engano. Minha irmã mais velha segurava em seu colo o meu pequeno irmão agitado, que resistia bravamente a todas as nossas sugestões de obedecer a rotina estabelecida nas noites dos dias letivos: banho, janta, sono. Fazíamos proposta, chantagens, mas o miúdo gritava "Não!" para tudo o que dizíamos. Foi então que, já se pendurando de ponta cabeça nos braços de minha irmã, o pequeno jogou sua ultima carta: "Mas não está nem noite ainda". É verdade, olhando pela janela e vendo o Sol alaranjado brilhando baixo no céu roxo, nem se desconfiava que já se passara das sete e meia há muito. A resposta foi rápida e tão astuta quanto a jogada da criança: "É porque é verão, querido. É dia mesmo quando é noite."
Boom!
Ah, a simplicidade da frase, a inocência da fala. Meus irmãos nem desconfiavam que martelava agora em minha cabeça uma imagem, bem forte, de um grande terreno, gramado verde e bem cuidado, e uma casa enorme e térrea, mais ou menos no meio do terreno. Uma grande varanda haveria nesta casa, tomando conta de toda a sua frente, e nela, balançando em uma cadeira que não balançava quando nova, um senhor de mãos fracas e cabelos brancos, finos. Aos seus pés, crianças, várias. Observavam o céu noturno que se derretia com o Sol brilhante. No rádio, alguma voz rouca e abafada diria "é dia mesmo quando é noite". Era um conto. Sem personagens ou nomes, apenas uma narração cansada - esta, minha mesmo - de certos acontecimentos que trariam consequências, não sei se para ti, mas com certeza para mim.
Naquela noite, quando fui dormir, já havia esboçado em minha cabeça o conto, que escreveria e postaria no meu blog no dia seguinte. Não tinha título ainda, mas pensaria nisso depois. Meu irmão, que se rendera ao sono há muito tempo, respirava o ar pesado do quarto escuro, ruidoso, ressonava o pequeno. Adorava estes momentos, que respirava fundo no meio de seu sono e se mexia na cama, como se completamente mergulhado em sua, aparentemente, pequena imaginação. Sentei na cama e pensei, ainda não sei por que pensei, que há muito tempo não tinha um sonho que conseguisse me lembrar de manhã.
Boom!
Pois naquela noite mesmo, enquanto a temperatura vacilava, os gatos miavam e a noite existia, sonhei um sonho que consegui lembrar de manhã. Estava eu - com meu corpo, minha cara, minhas mãos e cabelos - em uma livraria. Era escura como a Fnac, mas lotada como a Livraria Cultura. Vi, bem no meio da loja, em uma daquelas estantes que servem para chamar-lhe a atenção para lançamentos, um livro de capa azul royal, letras brancas e grandes. "O dia em que a noite não veio" dizia, com o meu nome escrito embaixo. Estranho, sei que pensei. Arrisquei-me, abri o livro, e a lá Coração de Tinta, encontrei-me em uma casa muito parecida com aquela que havia imaginado antes, só que menor, com apenas um quintal e em uma rua movimentada, com várias casas parecidas. Uma mulher lindíssima cortava cenouras na cozinha, enquanto outra assistia e lhe fazia perguntas. Ouvia, ao longe, uma narração aflita. Observei enquanto a história se contou na minha frente, sempre acompanhada da mesma voz carente, até que, ao chegar ao fim, os cenários se desmancharam. Ouvi congratulações de meus pais, e meu irmão, agora adolescente e cheio de espinhas, dizia-me que "até que curtiu".
Quando acordei naquela manhã, com gritos suaves de meu irmão que, já impaciente, mas ainda criança, queria que eu acordasse para que pudéssemos sair, lembrei-me daquele sonho, junto com pensamentos como: será que tenho agora um título para o conto? Escovava os dentes, ainda meio dormindo, rindo-me do sonho louco que havia tido - e que conseguia me lembrar muito bem. Foi então que me brilhou uma ideia: fazer daquilo um livro, de verdade. A minha proposta original para mim mesma, era, claro, esperar vários anos até que, com a cabeça já convencida de que escrever é possível para todos, escreveria o livro e nadaria em prazer ao ter meu nome reconhecido nas livrarias de São Paulo. Bateu-me, de repente, outro pensamento (Boom!), este mais arriscado. Um choque de adrenalina correu pelo meu corpo, e me olhei no espelho me perguntando se havia mesmo pensado naquilo: por que não escrever o livro agora? Ideia absurda, óbvio, porém muito atraente, e me acompanhou o resto do dia. Sabe, para qualquer pessoa com medo da ganância, um livro inteiro é um passo grande demais para ser feito de uma vez só, mesmo para aqueles que arriscam um conto de vez em quando.
Passaram-se alguns dias, Natal, Ano Novo, 16 de janeiro, e então 17 e 18, e de vez em quando pensava na tal ideia. Até que me resolvi, escreveria um livro, mas em segredo. Contaria apenas para aqueles que eu achava que gostariam de saber, e só depois de tê-lo pronto em minhas mãos. Claro que não deu certo. Pois presa nessa ansiedade de escrever algo tão significativo em minha vida ainda tão curta, não conseguia pensar em um nome para a minha personagem principal, aquela mulher lindíssima. Guardando o segredo com todas as minhas forças, perguntei às minhas amigas "quais nomes gostavam, mas não poriam em suas filhas". Disseram-me vários, rejeitei-os todos, até que, como se do nada, uma amiga disse "Maria Iolanda"
Boom!
E o rosto que tinha imaginado tornou-se ainda mais completo e claro. Nome e rosto se combinaram em uma harmonia que não podia negar. Yolanda seria o nome da personagem principal do meu livro. A outra, bom, esta também era importante, mas ainda não tinha forma. Encarnei - sim, em mim mesma - a voz aflita que acompanharia a história. Dei-me a responsabilidade de fazer parte da história. "Escritores mudam de forma, transformam-se ao escrever" ouvia a voz de uma antiga professora de português ecoar em meus pensamentos. "Você pode ser o que quiser" ouvia uma apresentadora de um programa infantil de TV dizer no final de seus programas diários. Passei a ter em mim, guardado e escondido, outra pessoa que se parece muito comigo, mas que tem em si algumas diferenças sutis e julgadoras.
Cansei de tê-la em mim, sugou-me uma parte de minha alma e grudou-a no papel, mas hoje, respiro de novo, sozinha, o ar inspirador que respirava antes, sozinha.
Pois hoje está pronto. Ou quase. Não sei se já tenho em mim a coragem de imprimi-lo e ter, em minha próprias mãos, o resultado apalpável de minha dedicação e trabalho. Concretizá-lo seria acabar com todas as minhas chances de desistir de tê-lo. Acho que, mesmo depois de tantos meses, ainda não me acostumei em ter em mim mesma um espírito escritor corajoso. Permita-me ser covarde por mais um tempinho, muito curto eu prometo, e aproveitar os últimos segredos que guardo.