sábado, 25 de outubro de 2008

Não esqueça o mar

Ela estava sentada na sua mesa, de frente à janela encarando o mar. Segurava firme a caneta e a sua mão suava. O papel branco à sua frente a esperava quieto, e toda vez que ela o olhava, estremecia mais um pouco.
Tomou coragem e escreveu as suas primeiras palavras. Riscou-as com insatisfação. Respirou fundo e retomou a escrita, sabia que ia doer, mas aquilo era preciso.

Sabe que por muito tempo sofri com a saudade do teu abraço, com a falta do teu cheiro e com o frio que o seu toque antes protegia, mas que agora me atinge brutalmente, sem nem ao menos avisar.
E também percebe que ao ir assim, sem nem dar espaço ao remorso, deixou para trás milhares de desejos mal planejados, e pesadelos que me acompanham pelos dias que se passam tão calmamente. Entende que a incerteza que ficou comigo é pior que as memórias e as fotografias que ainda ficam penduradas, por causa dessa minha falta de coragem de tocá-las.
Dói-me escrever essa carta, sabendo que depois a rasgarei em mil pedaços e a jogarei pelo ar, esperando que alguma parte lhe alcance, em qualquer que seja esse lugar onde está.
Gosto de pensar que fugiu para a cidade grande, para algum lugar com muitas pessoas parecidas, onde facilmente se perdeu em meio de tantos outros que lhe cercam. Gosto de pensar que lá, eu não te encontrarei e que lhe confundirei com qualquer um do resto do bando.
Mas em meio de tantos sonhos e hipóteses não posso esquecer-me do mar, lindo mar azul que me cerca e que me traz o conforto que antes era teu, mas que agora não é de ninguém. O mar, lar de tubarões e peixes palhaços, que poderia o ter levado para bem longe, onde pudesse se esquecer no meio das águas límpidas, onde a memória – e a consciência – já não mais se alcança. Gosto de pensar que as ondas me trazem o que restou daquilo que um dia foi teu e que a noite me murmura palavras de amor, com aquele ritmo tão calmo e sedutor.
Não me esqueço que é no mar onde abrigo nossos sonhos, que o levou para longe de mim, que jogou sal nos meus olhos e depois me abraçou carinhosamente. Não me esqueço que eu o desprezo com todo o meu carinho.
O mar carrega todas as minhas dores e lembranças. Então não se esqueça você, que no mar, você me encontra.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

O grande lucro

O bar estava como sempre, cheio e quente, com o seu incomparável zumbido de mil vozes. Quinta feira, fim da tarde, tudo era uma grande bagunça, pessoas gritando com os garçons que, nervosos, faziam ainda mais erros que de costume, risos histéricos de pessoas já um pouco alteradas e aquele cheiro de cerveja pelo ar.

Já se passava das seis, e seus cinco amigos o esperavam para contar e dividir os lucros do dia, já sentados em uma mesa perto à janela, cada um com o seu copo já meio vazio e impacientes. Estavam quase desistindo e indo para casa quando ele entrou no bar todo sorridente, como uma criança que acabou de ganhar uma caixa de presente com laço de fita.

Sentou-se na mesa calmamente e pediu uma bebida para um moço que passava. Este lhe devolveu algumas palavras mal educadas, afinal não era garçom coisa nenhuma. Seus amigos riam, e ele, sem perder a pose, vestiu a sua melhor cara de superior e disse, não me importo com a bebida, hoje ganhei coisa melhor. Todos os homens pararam de rir imediatamente e apoiaram seus cotovelos na mesa, curiosos para ouvir a história.

Ele bebeu um gole da bebida de seu colega, que nem se mexeu de tanta expectativa. Gozando da situação, reclinou-se na cadeira de plástico, limpou as unhas na camiseta suja, coçou a cabeça e limpou a garganta. Os seus amigos já mortos de curiosidade se cansaram de esperar a sua boa vontade e começaram o questionário.

"O que é? Ganhou boa coisa hoje?" um deles o perguntou. Ele apenas tirou do bolso as três moedas que tinha ganhado naquele dia. "Não mesmo" respondeu. Os cinco se mexeram nas suas cadeiras. Um coçou a cabeça, outro pôs a mão no queixo, outro olho para o teto. Eles até ignoraram a pequena quantia entregue.

"Então você conheceu alguém?" perguntou outro, o que segurava o queixo, piscando um olho como quem sugere malandragem. "Sou casado, rapaz" foi a resposta indignada.

"Já sei o que houve! Você apareceu na TV." este se reclinou na cadeira e cruzou os braços sobre a barriga, esperando a glória. "Eu? Nem de longe!"

As idéias foram acabando, seus amigos começaram a se render e a implorar pela história real. Ele, ria com a glória de quem pode, adorando todos os momentos em que ele tinha o poder.

Finalmente, depois de muitas promessas e propostas, limpou a garganta mais uma vez e tomou mais um gole da bebida de seu amigo, que de novo, não se moveu. Apoiou seus braços em cima da mesa e cruzou os seus dedos. Abriu a boca, formulando a frase em sua cabeça, mas fechou-a de novo. Os cinco outros, imitavam a sua pose, cada um se aproximando dele o máximo que podiam, para poderem ouvir todos os detalhes. Então ele, finalmente, começou. "Imaginem só, eu lá na minha rua. Fechou o farol, eu me levantei e fui até o primeiro carro, ofereci a bala, fiz a propaganda que pude, mas o moço não quis nem abaixar o vidro. Fui então para o segundo carro, vi que haviam umas crianças sentadas no banco de trás, mas assim que elas me viram, esconderam as bolsas embaixo do banco e então eu fui embora. Quando fui para o terceiro carro, a janela estava fechada e havia uma moça dirigindo sozinha. Ofereci a bala com todo o carisma que consegui. Ela me olhou nos olhos, fez não com o dedo e me deu um sorriso. Um sorriso tão bonito, sincero. Me fez sentir um calor assim, subir no meu peito. Eu fiquei tão feliz, que voltei a me sentar na calçada e fiquei lá a tarde inteira, pensando no sorriso da moça. Aquilo fez o meu dia."
Houve um grande silêncio. "Só isso?" um deles perguntou.

domingo, 19 de outubro de 2008

Amor passageiro

O barco navegava balançando lentamente. Ele se apaixonava loucamente por ela. Ela começava a reparar no amor que sentia por ele.
Com o balanço do barco eles iam tomando coragem para conversarem. Viam-se todos os dias, mas nunca sentiram coisa parecida. E mútua.
Passou uma onda e o barco balançou mais do que devia. Ele se desequilibrou e sentou-se do lado dela. Ela, com um susto, levantou e afastou-se.
E ficaram nestes desencontros pelo resto da viagem. Trocavam olhares, risos, sonhos. Agora, o que sobrava, era a vontade de ter tudo aquilo bem perto.
Ela se levantou e se sentou do lado dele. Desta vez, ele ficou lá.
Ensaiaram segurar as mãos, mas o nervosismo era demais, e acabaram por coçar os rostos. O barco ia desacelerando, já não balançava tanto. A urgência do toque era grande.
Seus dedos finalmente se encontraram e se entrelaçaram. O barco ancorou no cais da praia.
Ele olhou nos olhos dela, mas já não sentia mais nada. Ela, sentiu o remorso se apoderar do seu corpo.
Sairam do barco, continuaram as suas vidas

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Ontem, no almoço

Faz algum tempo já que ela age deste jeito. Não tenho certeza se é a velhice que finalmente chegou ou se é a simples saudade, mas toda vez que conversamos ela parece querer me contar algo, mas nunca o faz. Ao invés, fica em silêncio até que eu suplique por algumas palavras sequer.

Ontem foi bem assim. Almoçamos juntas, como não fazíamos há muito tempo. Estávamos nós, sentadas à mesa na mesma posição de sempre. Me senti bem ao perceber que, mesmo depois de tanto tempo, permanecíamos as mesmas.

Havia uma tristeza cansada no seu olhar, algo que nunca esteve lá. Depois de algum tempo naquele silêncio esmagador, começou a me contar uma história sobre a sua infância, enquanto a minha admiração pela sua paciência somente aumentava.

Me contou como foi oprimida por muito tempo, sentiu a dor da perda, mas escondeu-a dos outros, guardou segredos ardentes, ignorou a própria dignidade. Serviu aqueles que a faziam sofrer, com graça e classe. Sempre se importou com os outros, sentiu poucos, porém intensos prazeres. Negou o ócio. Esperou pacientemente por uma recompensa, e tudo o que ganhou foi uma possibilidade de vingança, que desperdiçou, pois não parecia certo.

Nunca entendi como ela podia ter passado por tanto e ter permanecido assim, tão calma, carinhosa, cristã. Nunca compreendi essa sua imensa fé em algo tão questionável. Nunca compreendi também por que a sua fé fazia tanto sentido, enquanto a minha sempre pareceu uma grande piada.
Ontem mesmo, me contou com palavras cruas tudo o que sentiu durante todo este tempo. Me contou com o peso de quem tem muito a se arrepender, como rezou esperançosa e depois desejou o fim de todos e de tudo. Olhou nos meus olhos, se arrependeu de todas as palavras não ditas, me confessou os seus pecados.

No final do almoço, ela me parecia muito mais humana, com suas falhas e pecados. Agora percebo que, depois de tanto tempo vendo-a como a minha heroína, ter apenas uma avó é muito melhor.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

As duas

Foi um caso de amizade lindo, sem brigas, intrigas, traições. Apenas a saudável e inocente amizade de duas meninas. Saudável, eu digo, pois elas aprenderam muito sobre elas mesmas quando estavam juntas, cada uma de um jeito.
 Basicamente, as duas aprenderam a ser. Simplesmente ser, do jeito que der.
 Com essa lição aprendida, elas rodaram o mundo, cada uma de seu modo, porém sempre juntas.
Foram os dias mais legais, as conversas mais estranhas, as piadas mais sem graça.
 E aí uma delas se mudou para o outro lado do mundo, enquanto a outra precisou arranjar outra coisa para ocupar o seu tempo.
Mas as suas juras de amizade eterna nunca foram em vão, e elas são amigas até hoje, e para todo o sempre.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

A pequena história de um grande amor

A pulga Epaminondas foi procurar comida pelas ruas de Paris. Procurou e procurou, porém nada encontrou.
Foi então que viu passeando pelo parque a poodle Petúnia, a única poodle azul-celeste do mundo.
Por ela se apaixonou.
Se alojou nos seus pelos para poder ficar mais perto do seu cheiro, do seu calor, do seu carinho.
Não quis mordê-la para não machucá-la

Por ela morreu de fome.

domingo, 5 de outubro de 2008

Ciranda da Bailarina

Gosto de poder sentir o orgulho e superioridade raspando na minha garganta toda vez que encontro uma oportunidade para falar, em alto e bom tom, Sou bailarina sim, com meia-calça e sapatilha. Salto, danço, rodo, caio confiando nos meus humildes pés. Mas ser bailarina é muito mais do que simplesmente dançar.

É mais do que sentir as pernas latejando mas não desistir em momento algum. Alongar o corpo até o extremo, mesmo que isso te faça sofrer. Saber que todo este sofrimento só resulta em beleza, beleza raramente percebida do jeito que merece. Beleza em troca de dor. Beleza em troca de aplausos. Aprender a esquecer que os aplausos podem ser mera polidez, e não entusiasmo verdadeiro.

É mais do que aprender a arte de fingir nunca errar, atuar com perfeição, esconder as sensações, não se conformar com o bom. Arte de não se importar com a cãibra que te invade, mas com o pescoço alongado.

É mais do que se acostumar a sorrir sorrisos amarelos e magoados quando lhe dizem que o Ballet não pode ser tão difícil assim. Saber se controlar quando lhe perguntam se é verdade que o Ballet é uma arte em decadência. Aprender a tratar destas feridas abertas com nada além da dança.

É mais do que poder sentir a glória de virar duas pirouettes. Ver a sua perna subir até bem próximo do seu rosto. Sentir o alívio único de poder se segurar na barra com as duas mãos e jogar o seu peso para trás com os dois pés firmes no chão, costas retas, joelhos esticados e a sensação de poder, por um instante, confiar nas suas mãos. Acreditar que você é capaz de tudo.

Desafiar a gravidade, sentir dores desumanas, descobrir um outro lado da vida, saber não se orgulhar, aprender não se importar com a falta de interesse - ou de elogios.

Tudo isso para poder subir em um palco e ver que tudo vale a pena. Tudo isso só para poder dizer aos outros que você é uma bailarina e sentir aquela indescritível sensação de quem sabe que está fazendo a coisa certa.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Um bloqueio consertado

Me lembro de quando tudo isso começou. Me lembro de ser pequena ainda, na praia com a minha família. Nossa, mas que família linda nós éramos. Lembro como queria ir para o mar, pular todas as ondas que viessem, grandes ou pequenas, e nadar até que as pontas dos meus dedos estivessem enrugadas.

Mas agora, percebo que sempre tive medo do mar. Toda aquela incerteza das ondas, toda aquela espuma.

Me lembro da última vez que fui para a praia e que não foi tão bom como eu imaginava. Corri em direção ao mar, tentando me lembrar o que era aquilo que me fazia mergulhar de cabeça em todas as ondas. Parei no meio do caminho. Por um momento quis começar a chorar. Agachei na sua frente, meus dedos tocaram na água fria sem querer. Só senti frio, mais nada.

Foi a mesma coisa que senti quando andei de montanha-russa pela primeira vez. Frio, mais nada. Enquanto todas as outras pessoas à minha volta gritavam e se contorciam, eu não conseguia sentir nada.

E minha voz, então, tinha a perdido e não fazia idéia de onde começar a procurar. Beirava a insanidade.

Sofri muito. Chorei bastante. Queimava por dentro, latejando com a incerteza da causa - ou da culpa.

As palavras que não conseguiam sair, as sensações que não conseguia distinguir, o desespero de me encontrar dentro de algo que ainda não havia decidido o que era. Estava querendo me assumir como uma alma perdida, mas mesmo isso eu não tinha certeza do que queria dizer.

O caos emocional me desesperava.


Mas então, um dia tudo se curou. Quando eu vi os seus pequenos olhos pela primeira vez, quando a sua mãozinha enrugada apertou a minha pela primeira vez, quando ouvi o seu choro pela primeira vez, quando eu o chamei de "irmão" pela primeira vez, encontrei aquela "paz interior" que eu nem sabia que tinha mas que foi a solução de todos os meus problemas