É uma linha muito tênue que delimita o estar sonhando e o
estar acordado. É um de repente que faz com que o sonho se desmanche e os olhos
se abram. Pesados, os olhos veem alguns borrões, enquanto um suspiro longo sobe
pelo nariz e os lábios grossos se descolam. Rola na cama até estar de barriga
para cima, se livra do edredon, estica o corpo até as pontas dos pés. Por
alguns instantes ainda, com o corpo completamente imóvel e os olhos
completamente abertos, encara o teto branco acima da cama. Pra quê? – para
acreditar que acordou, para se lembrar do que tem que fazer agora, para
desenhar na cabeça quais serão os próximos passos, para ter certeza de que o
teto está exatamente onde o deixou na noite anterior. Poe os dois pés juntos no
chão, pés descalços no chão frio. Mexe os dedos, alonga os tornozelos, estica
as costas, estala o pescoço. Quando finalmente levanta, postura firme, sente
calafrios correndo o corpo quente como raios, arrepia os pelos do antebraço e
os punhos se fecham como um reflexo.
De pé na cozinha, esquenta água para um chá. A chaleira
amassada vacila em cima do fogo aceso, som metálico de um tec-tec mecânico. O
cheiro de maresia na mobília, nos talheres, nos papéis, nas roupas, impregnado
no nariz. O vento vem do mar e bate na porta, mas não pede licença para entrar
pela janela. Cerrada, a cortina ainda resiste um pouco, mas cá e lá abre um
espaço para que a brisa invada a sala. O sol parece que expulsa as nuvens do
céu, o azul fica até esbranquiçado. Próximas, as ondas avançam gentis na areia,
de novo e de novo; lá longe, batem nas pedras e para trás só deixam uma espuma
amarelada.
A chaleira apita.
O chá é feito.
A onda avança na areia.
Senta-se na primeira cadeira que vê, xícara ao alcance. Como
quem pretende impressionar alguém, cruza as pernas e abre o jornal com
determinação tal que as folhas se amassam e quase rasgam. As pupilas dançam
pelas palavras, algumas chamam sua atenção, os lábios imitam uma leitura e as
sobrancelhas se curvam em apreensão – na cabeça passeiam mil ideias, mas
nenhuma relacionada com o que vê no papel. Volta a dobrar o jornal e o coloca
no chão. Aperta a xícara com as duas mãos, dá um gole e outro mais. Com os nós
dos dedos ossudos bate na mesa de madeira para afastar um pássaro que havia
parado no peitoril da janela – e com o seu pescoço de pássaro, olhava para cá e
para lá, e para lá.
Então, ali, espera. Pois a manhã vai acabar e a tarde vai
passar e a noite vai chegar. Será hora de fazer todo o ritual ao contrário –
tomar mais um chá, voltar ao quarto, deitar de barriga para cima, encarar o
teto, guardar-se no edredon e fechar os olhos até que, sem perceber, esteja do
outro lado daquela linha tênue, sonhando.