segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Sensibilidade ou cultura?

Agora em novembro assisti nas aulas de Ensino Religioso, por algum motivo, o filme baseado no best-seller O menino do pijama listrado. Todas as meninas choravam, enquanto os meninos riam de seus olhos inchados, e foi então que eu ouvi tal declaração:
"vocês meninos não são sensíveis o bastante para entender a sensibilidade deste filme!"

Fiquei encucada: não achei nada de nada sensível. É um filme muito bonito, é verdade, e uma história bem contada e muito bem amarrada, apesar de bastante óbvia. Mas, sensível? Não sei se este é o rótulo mais preciso.

Lembro-me que assistimos este filme mais ou menos na mesma época do incidente do restaurante coreano aqui em São Paulo, sabem? Em que 60k de carne de cachorro e gato foram apreendidos pela polícia em um restaurante coreano. Um crime absurdo!

Agora, por quê?

Porque a imagem do cachorro, em nossa cultura, é equivalente a imagem de um ser humano. Não é? O cachorro, afinal, é o melhor amigo do homem, certo? É apenas dá-lo um nome e pronto, cria-se um vínculo afetivo breve, porém fortíssimo. Além do mais, quantos de vocês já não tiveram, quiseram ter ou ainda têm um cachorro? Quando se ouve dizer que se comiam cachorros, sua memória não se direciona automaticamente ao cachorro mais próximo de você, ou seja, aquele que tem o seu carinho. A imagem que se tem, na maioria dos casos então, não é semelhante a de se alimentar de um primo ou mesmo irmão?

Agora, voltemos aquele ponto de antes, a sensibilidade dos best-sellers.
Já leu Marley & Eu? Se não, tenho certeza que viu pelo menos  a capa. É um labrador, certo?, pequenininho, com cabeça de lado, olhos redondos e orelhas caídas. Este é o Marley. De acordo com a cultura da sociedade em que você vive, ele é fofo. Muito fofo. E tem um nome, portanto é um "alguém" de verdade. Então é claro que - cuidado, spoiler - quando Marley fica velho e naturalmente caminha em direção à luz, você chora. É o melhor amigo do homem, que se assemelha de alguma forma com a sua realidade, e que morre. (E a morte também é definida culturalmente como uma coisa trágica, merecedora de lágrimas e tristezas, não é?)

A mesma coisa acontece com O menino do pijama listrado. São crianças, pôxa vida. E o pior (cuidado, spoiler) - reinterprete as suas lágrimas: é muito provável que tenha chorado por que o garoto alemão  morreu, já que o judeu obviamente morreria no final. São duas crianças pequenas, portanto são inocentes e apenas curiosas. É uma pena morrerem, já que eram somente crianças, certo? Será que não é por isso que chora?, pois são crianças, e há uma forte imagem angelical vinculada a juventude. Se nos apoiamos na questão da inocência, então, as lágrimas aumentam, pois "somem os motivos e justificativas" meramente plausíveis para o seus tristes fins.

Será que compreende o que digo?
Pois é uma característica cultural da sociedade em que você vive, leitor. Chorar lendo qualquer um destes livros não prova a sua sensibilidade, mas o seu mero senso de humanidade. E o seu grau de participação em sua cultura.

O que define a sensibilidade de uma história/literatura são fatores maiores e mais complicados e - no meu ponto de vista - altamente relativos. Aconselho-lhe a não se apoiar na lista dos mais vendidos para definir-se ou mostrar aos outros quão grande é o seu coração.
E, cuidado com as afirmações que faz.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Breve esclarecimento sobre literatura africana

Sempre me impressionou a rapidez com que as coisas mudam. Em março, por exemplo, não poderia imaginar que estaria aqui hoje, escrevendo este post. Mas já que mudam assim, sem termos o mínimo controle, simplesmente acompanhar é a nossa única opção.

Logo no começo do ano escolhi, como primeira opção, cursar o Projeto de Literatura Africana (de países lusófonos). Estranha escolha, muitos me falaram, às vezes com uma simples careta ao invés de palavras. Mas nada disso me incomodava, afinal fiz esta escolha por ter certeza do que quero para o meu futuro: estudar literatura. Todo e qualquer conhecimento que adquirir agora me trará benefícios depois. Percebi o quanto é difícil para as pessoas compreenderem e aceitarem uma produção cultural africana que seja mais que barulhos corporais e danças folclóricas. Foram inúmeras às vezes em que me encontrei diante de: “ah, e África lá tem literatura?”. Mas nada disso me atingia. A monografia que Ana e eu escrevemos para o Projeto, como um simples trabalho escolar, acabou se tornando uma atividade extracurricular. Fomos convidadas pela professora para tentar nos inscrever na FEBRACE. (Está lá, inscrito. Agora só nos resta esperar.) Esta possibilidade de continuação do trabalho fez com que muitas discussões e análises se fizessem necessárias, o que nos transformou em duas defensoras ferrenhas da literatura africana. Comentários e desprezo para com essa literatura já não são mais permitidos perto de nós, que com nossos humores costumeiros, fazemos questão de exibir o nosso incomodo. É difícil o ouvinte entender o porquê do sermão – e, por ter a ferramenta e finalmente, o tempo – decidi escrever-lhe e esclarecer tudo.


Desconsidere, antes de tudo, qualquer que seja a sua visão sobre literatura. Ignore, por alguns momentos, os “objetivos” que enxerga em qualquer produção literária. Pensar que livros são feitos somente para o divertimento do povo alfabetizado, para lhe servir de passatempo; escritos apenas por figuras excêntricas e reservadas, que gostam de questionar o mundo ao seu redor e lhe expor seus pensamentos íntimos, suas idéias e opiniões avançadas para as suas épocas; análise da sociedade; produtos feitos exclusivamente para o mercado – são todas visões parciais. Tipos idealizados de escritores foram criados, obedecendo tais objetivos. Paira um ar de classe média alta enquanto se pensa em literatura norte-americana. Da produção britânica, então, nem se fala! E é então que chegamos aos estereótipos africanos – vários países sofrem com problemas sociais, econômicos e políticos, e ainda há o bom e velho preconceito racial, para dar o toque final neste pacote de insensibilidades – que esbarram nas nossas imaginações e nos impedem de pensar em qualquer produção literária na África. Mas as coisas, obviamente, não são bem assim.


Angola, o país por nós estudado, fortaleceu a sua produção durante o período colonial, pois fez da literatura uma ferramenta de resistência, utilizando-a para a construção da identidade cultural angolana e na luta pela independência do país. Os intelectuais participavam efetivamente das guerrilhas, com armas nas mãos. Pepetela, intelectual angolano, fez de sua novela As aventuras de Ngunga uma ferramenta para a alfabetização e educação de guerrilheiros. Os "objetivos" da literatura angolana saem dos padrões por nós estabelecidos, e por isso pode nos parecer estranho uma produção literária feita para libertar um povo do regime colonial que os controla.

O escritor contemporâneo estudado foi Ondjaki, que nasceu após a independência angolana (1974) e, portanto não lutou em guerrilhas, mas escreve com um viés autobiográfico, narrando histórias de sua infância, indicando uma mudança na literatura angolana. Ao contrário do que se é dito, a literatura angolana pode sim ser considerada de muita qualidade, mesmo quando não relacionada com guerrilhas e lutas pela libertação. É quase um absurdo dizer que escritores angolanos podem apenas criticar e reinvindicar a situação social de seu país, sem poder inserir em seus textos, memórias e sentimentos. Ondjaki é uma prova viva disso.

Moçambique segue uma trajetória semelhante, pois também foi uma das últimas colônias portuguesas a se tornar livre.
A tese ainda continua. 30 páginas quase, com citações e uma bela formatação. Foi um longo, mas gratificante trabalho, que nos deu a possibilidade de escrever, hoje, um post em defesa à literatura africana. Não há mais justificativas para qualquer descaso ou desprezo; o básico lhe foi explicado. Não esperamos que se interesse por este assunto, assim como aconteceu conosco, mas peço pelo menos que perceba o que é a tal literatura africana, e o seu verdadeiro valor.
E não nos venha mais com comentários impertinentes.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Lágrimas e Klinex

Fazia tempos que não me entristecia assim. Já me era quase um sentimento desconhecido, clandestino em meu pequeno coração. Meu corpo via-se seco e esturricado por dentro, ligações internas quase rompidas. Talvez foi o desacostume, é verdade, que fez com que todas as cores parecessem borradas, e as linhas indefinidas diante de meus olhos mareados de lágrimas salgadas. Bochechas úmidas e nariz escorrendo, sentia os lábios entortarem com força para segurar qualquer outra lágrima que restava-me ainda pendurada nos cílios, que traria consigo uma outra longa enxurrada.
Sentava-me no escuro sozinha, patética - invisível porém. Dialogava com as sombras que via rondar os meus olhos, e aconchegava-me no quente do edredon amassado feito um colo carinhoso. O escuro respondia-me, tudo aquilo que desejava, ouvia de novo as palavras gaguejadas que saiam em um impulso incontrolado. E então, deixava-me ser no silêncio solitário, eu apenas e meus pensamentos. Terríveis pensamentos, que de vez em quando trazia-me de volta à memória todos os sofrimentos de momentos atrás, e dava de novo aos meus olhos motivos para transbordarem.
Fazia tempo, é verdade, que não me sentava naquela posição tristonha, e me encontrava de repente, com aquele tal espírito escritor que reside alguma parte de mim. Engordara, acredito eu, desde a última vez que nos encontramos nesta mesma situação. Pois foi quase instantaneamente que os meus dedos molhados de lágrimas enxugadas começaram a formigar. Sim, minha mão formiga sempre que tenho em minha cabeça, palavras exaltadas crescendo-se em frases emocionais. E as benditas palavras vinham me violentas, uma após a outra, em orações lindíssimas que acabaram por se perder na minha imaginação incontrolável. É-me normal, porém, perder idéias de repente.
Todas as lágrimas secaram, sim, e senti que meu nariz já não estava mais vermelho. Meus lábios, agora talvez, acompanhavam sussurrando as várias idéias que me brotavam no pensamento, nada que eu conseguisse perceber ou controlar.
Acho que então adormeci, vestida neste outro espírito que me toma nas horas mais inesperadas. Pois então não me encontrava mais no escuro, como antes havia me deixado. Não havia sombras ao meu redor, nenhuma, tampouco conforto. Estava ali apenas eu, em mais ninguém – incríveis ossos fracos, e uma pele sensível que mal os cobria. Mãos pequenas e grandes olhos, sim, foi isso o que vi enquanto me observava em alguma poça qualquer. Enxergava nas veias verdes o fluxo estranhamente lento do sangue quente e grosso. Só por isso soube que ainda vivia.
O cenário eu não entendo, até hoje. Procuro em lembranças, mas o que vejo, na realidade, são dois olhos enormes – meus, eu sei – que brilhavam com a mesma tristeza que fora derramada por todo o escuro compreensível. E não é que ainda lhe escorriam lágrimas, enormes gotas de água pesada, que contornavam as bochechas e pingavam pelo queixo, sem qualquer controle e sem mais nenhum motivo aparente, pois até esse já havia desvanecido. É só isso que me lembro, dores injustificadas e sem controle.
Sei bem que era um sonho. Pois é apenas em sonhos que os objetos mais desejados lhe aparecem nas mãos como em um passe de mágica – e em um movimento vi em minhas mãos um lenço de papel. Papel grosso, reparei com as pontas dos dedos ressecadas. Mas precisava secar as mágoas que me escapavam. E ao dobrar o papel da forma que sempre o faço – na metade, horizontalmente – vi palavras desenhadas em tinta azul, minha letra, por todo o papel. Frases, por mim mesma pensadas, que causavam-me ainda vergonha, mesmo quando lidas em silêncio para os meus próprios ouvidos. Sempre fui tão reclusa...
Mas relembrando as idéias e palavras que de mim um dia fluíram livremente, todas as mágoas exageradas que transbordavam de meus pobres olhos foram se tornando ainda outras idéias e palavras, frases ainda mais completas e histórias ainda mais significantes.
Sumiram quase todas, as lágrimas. Hoje, são-me raras. Mas o soberbo espírito escritor cresce mais e mais em mim todos os dias em que sinto aquela necessidade oculta de achar-me no escuro solitário das sombras reconfortantes. Os lenços portanto são agora usados em mais frequência – tenho até a minha própria coleção.