quinta-feira, 26 de abril de 2012

Vizinhança


O grito que se escutou pela rua escapou da boca de uma moça descamisolada que, de pé ao lado da cama, emaranhava seus dedos na raiz dos cabelos encaracolados. Mas, descalça, hesitando em seus pés, estava escondida no escuro do seu quarto e, portanto, ninguém a adivinhava.

- O que houve? Quem gritou?

Na frente da casa térrea amarela, sem jardim e sem portão, começava a se concentrar um aglomerado de curiosos em seus pijamas. Moças de bobs, moços de boxers, velhos de robes, crianças de pantufas. Batiam na porta, encostavam as orelhas nas janelas, subiam nas pontas dos pés.

- Alguém morreu?
- Ela o matou?
- Foi ela quem morreu?
- Deus acuda, que pecado!

A porta continuava trancada e as janelas, cerradas. Chave, corrente, fechadura tetra. Veneziana, vidro, cortina. Nada entrava, só saiam os sons de portas batendo, conversas exasperadas, correrias e sprays.

- Estão tentando limpar o sangue!
- Me disseram que ela foi esfaqueada.
- Nada, ouviram um tiro logo antes do grito. E acho que foi ela quem puxou o gatilho...
- Meu Deus, que pelo menos tenha ido em paz!

Como o barulho de dentro da casa parou de repente, levantou-se uma nova excitação no pessoal parado na rua. Precisavam descobrir o que havia se passado, mas ninguém atendia a campainha. E, claro, não podiam simplesmente arrombar a porta – todos concordemos que é preciso respeitar a privacidade alheia.

- Não nos apressemos! – um velho se decidiu líder, falava grave enquanto amarrava o robe na cintura – a casa não tem outra saída se não a porta da frente. E nós, bons vizinhos, a estamos bloqueando. Em algum momento, o infeliz que tão cruelmente matou nossa companheira de bairro vai precisar sair. E assim que abrir a porta, vai se deparar com esta multidão pronta para fazer justiça!

Uma nova vibração de apoio e aceitação correu por aquela rua. Toda a gente se dividiu em grupos, sob as orientações cuidadosas do velho. Alguns foram levar as crianças para dormir, outros foram buscar cadeiras, outros ainda recolheram cobertores e uns fizeram café. E ali, separados os turnos e os biscoitos, iniciou-se uma tocaia. Unidos, pegariam o culpado por o que for que tenha feito!

A noite passou, logo chegaram as primeiras horas da manhã. Dentro da casa, ainda nenhum movimento e no grupo de tocaia, uma nova preocupação: tinham aulas para assistir, reuniões para comparecer, fábricas para fazer funcionar. Após uma breve assembleia e votação, decidiu-se que, bem, se a pessoa não saiu até agora, não deve ter sido nada mesmo, né?

O grupo prontamente se dispersou. Cada um voltou a cuidar de sua vida e a manhã continuou no seu passo normal. A casa permanecia selada, indiferente a qualquer perturbação.

Lá pelas nove horas um barulho na porta: era a moça – agora vestida e calçada – saindo para o trabalho. Levava consigo a sua bolsa, uma pasta, uma jaqueta e um saco de lixo, onde levava o cadáver do sapo que havia surgido em seu quarto naquela madrugada. Com nojo, largou o saco de lixo na lixeira da esquina e seguiu seu caminho para pegar o ônibus.

E o pobre sapo nunca viu sua prometida justiça, cumprida. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

"Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um deles é burro"
Mário Quintana