O grito que se escutou pela rua escapou da boca de uma moça
descamisolada que, de pé ao lado da cama, emaranhava seus dedos na raiz dos
cabelos encaracolados. Mas, descalça, hesitando em seus pés, estava escondida
no escuro do seu quarto e, portanto, ninguém a adivinhava.
- O que houve? Quem gritou?
Na frente da casa térrea amarela, sem jardim e sem portão,
começava a se concentrar um aglomerado de curiosos em seus pijamas. Moças de
bobs, moços de boxers, velhos de robes, crianças de pantufas. Batiam na porta,
encostavam as orelhas nas janelas, subiam nas pontas dos pés.
- Alguém morreu?
- Ela o matou?
- Foi ela quem morreu?
- Deus acuda, que pecado!
A porta continuava trancada e as janelas, cerradas. Chave,
corrente, fechadura tetra. Veneziana, vidro, cortina. Nada entrava, só saiam os
sons de portas batendo, conversas exasperadas, correrias e sprays.
- Estão tentando limpar o sangue!
- Me disseram que ela foi esfaqueada.
- Nada, ouviram um tiro logo antes do grito. E acho que foi
ela quem puxou o gatilho...
- Meu Deus, que pelo menos tenha ido em paz!
Como o barulho de dentro da casa parou de repente,
levantou-se uma nova excitação no pessoal parado na rua. Precisavam descobrir o
que havia se passado, mas ninguém atendia a campainha. E, claro, não podiam
simplesmente arrombar a porta – todos concordemos que é preciso respeitar a
privacidade alheia.
- Não nos apressemos! – um velho se decidiu líder, falava
grave enquanto amarrava o robe na cintura – a casa não tem outra saída se não a
porta da frente. E nós, bons vizinhos, a estamos bloqueando. Em algum momento,
o infeliz que tão cruelmente matou nossa companheira de bairro vai precisar
sair. E assim que abrir a porta, vai se deparar com esta multidão pronta para
fazer justiça!
Uma nova vibração de apoio e aceitação correu por aquela
rua. Toda a gente se dividiu em grupos, sob as orientações cuidadosas do velho.
Alguns foram levar as crianças para dormir, outros foram buscar cadeiras,
outros ainda recolheram cobertores e uns fizeram café. E ali, separados os
turnos e os biscoitos, iniciou-se uma tocaia. Unidos, pegariam o culpado por o
que for que tenha feito!
A noite passou, logo chegaram as primeiras horas da manhã.
Dentro da casa, ainda nenhum movimento e no grupo de tocaia, uma nova
preocupação: tinham aulas para assistir, reuniões para comparecer, fábricas
para fazer funcionar. Após uma breve assembleia e votação, decidiu-se que, bem,
se a pessoa não saiu até agora, não deve ter sido nada mesmo, né?
O grupo prontamente se dispersou. Cada um voltou a cuidar de
sua vida e a manhã continuou no seu passo normal. A casa permanecia selada,
indiferente a qualquer perturbação.
Lá pelas nove horas um barulho na porta: era a moça – agora
vestida e calçada – saindo para o trabalho. Levava consigo a sua bolsa, uma
pasta, uma jaqueta e um saco de lixo, onde levava o cadáver do sapo que havia
surgido em seu quarto naquela madrugada. Com nojo, largou o saco de lixo na
lixeira da esquina e seguiu seu caminho para pegar o ônibus.
E o pobre sapo nunca viu sua prometida justiça, cumprida.
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"Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um deles é burro"
Mário Quintana