quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Ontem, no almoço

Faz algum tempo já que ela age deste jeito. Não tenho certeza se é a velhice que finalmente chegou ou se é a simples saudade, mas toda vez que conversamos ela parece querer me contar algo, mas nunca o faz. Ao invés, fica em silêncio até que eu suplique por algumas palavras sequer.

Ontem foi bem assim. Almoçamos juntas, como não fazíamos há muito tempo. Estávamos nós, sentadas à mesa na mesma posição de sempre. Me senti bem ao perceber que, mesmo depois de tanto tempo, permanecíamos as mesmas.

Havia uma tristeza cansada no seu olhar, algo que nunca esteve lá. Depois de algum tempo naquele silêncio esmagador, começou a me contar uma história sobre a sua infância, enquanto a minha admiração pela sua paciência somente aumentava.

Me contou como foi oprimida por muito tempo, sentiu a dor da perda, mas escondeu-a dos outros, guardou segredos ardentes, ignorou a própria dignidade. Serviu aqueles que a faziam sofrer, com graça e classe. Sempre se importou com os outros, sentiu poucos, porém intensos prazeres. Negou o ócio. Esperou pacientemente por uma recompensa, e tudo o que ganhou foi uma possibilidade de vingança, que desperdiçou, pois não parecia certo.

Nunca entendi como ela podia ter passado por tanto e ter permanecido assim, tão calma, carinhosa, cristã. Nunca compreendi essa sua imensa fé em algo tão questionável. Nunca compreendi também por que a sua fé fazia tanto sentido, enquanto a minha sempre pareceu uma grande piada.
Ontem mesmo, me contou com palavras cruas tudo o que sentiu durante todo este tempo. Me contou com o peso de quem tem muito a se arrepender, como rezou esperançosa e depois desejou o fim de todos e de tudo. Olhou nos meus olhos, se arrependeu de todas as palavras não ditas, me confessou os seus pecados.

No final do almoço, ela me parecia muito mais humana, com suas falhas e pecados. Agora percebo que, depois de tanto tempo vendo-a como a minha heroína, ter apenas uma avó é muito melhor.

Um comentário:

  1. Que lindo, fiquei emocionada, e algumas vezes me encontrei nestas palavras.
    Parabéns,
    MCecilia(nev)

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"Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um deles é burro"
Mário Quintana