sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

One more time with feeling:

Amanhã é um dia novo, de um mês novo, de um ano novo, de uma década nova... Tantas mudanças que meu coração quase não acompanha!

Dessa vez não tenho listas do passado nem promessas pro futuro. Digo apenas que 2010 vai-se bem a tempo, se quer saber o que penso, já começava a me enjoar. As aventuras, felicidades e imagens açucaradas ficarão na memória e no coração, sempre ao alcance. As coisas ruins que se acumularam durante o ano - que inevitavelmente existem, voláteis e autônomas - também nos acompanham na lembrança, boas cicatrizes da alma, e em algum momento nos darão sabedoria.

Mas, pra que pensar nelas agora, hein? Agora que 2011 nos espera tilintando cheio de expectativas e, espero, mais risadas.

Para aqueles que me acompanham, bom, nos vemos em breve!

Bom começo de futuro para todos nós!

domingo, 5 de dezembro de 2010

Nota:

(E o azar foi do poeta que, por desejar apenas intensos versos, esqueceu como se faz prosa.)

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

doze horas


tenho vivido a rotina ao contrário. passo as manhãs e tardes mergulhada em um tédio oscilante, alheia e cansada; os olhos abertos só enxergam paisagens. através da noite, porém, os olhos e o coração ficam despertos, procurando, no escuro, medir a distância do travesseiro até o teto. 

um arrepio passa pela espinha – o relógio narra a madrugada em tons graves. na cabeça pulsam listas imaginárias de compromissos, deveres, tarefas... martelam, incessantes, afastando o sono e o descanso. 

o silêncio oprime à medida que também conforta. forma-se uma pressão abafada, quase um abraço. no ouvido, um zumbido constante incomoda. longe, um carro passa por uma lombada, um cachorro rosna e um galho geme. ruídos, apenas ruídos, não interferem no silêncio congelado do quarto. 

o cobertor pesado aquece a pele, mas não o coração. seria quase um afago, mas sua falta de vida decepciona. o escuro da noite agora se dissolve em penumbra diante dos olhos acostumados, e o quarto calado encara, vazio, de volta. a insônia entristece e lágrimas ensaiam cair. dessa vez, a solidão não conforta. com os olhos forçadamente fechados, procurando, desesperada, um toque gentil, encontro apenas o concreto frio da parede. o toque assusta, quase fere. 

vencida, levanto-me. sei que devo procurar conforto em quem certamente me dará. os passos cuidadosos já conhecem o caminho, o corpo cansado joga-se a frente, desejando o chegar logo. além da porta de madeira, outro universo se estende. mais escuro, mais quieto, mais desconhecido. porém, não vazio, tão simplesmente oco quanto o meu próprio... na cama de casal, minha mãe se estica em uma diagonal, mas acorda com a aproximação dos meus passos. 

trocamos palavras, algumas. O sono encobre algumas das suas, mal as entendo. respondo algo, não ouve. aceita-me com um abraço, ou algo do tipo. coloca seu braço em minha barriga, perto do coração, como se o sono fosse contagioso. 

logo ressona. eu, ainda só, recrio. revivo cenas do dia que foi, relembro sonhos e desejos, refaço aquelas mesmas listas de antes. suspiro, o meu sono não chega.

minha mãe agora ronca. ronrona, na verdade, discreta e gentilmente. é bom, quebra o silêncio, e o seu toque quente quebra o desconforto. meu lado do colchão está quase quente. 

a madrugada passa, os olhos navegam entre o aberto e o desperto. um galo canta, estranhamente. a sol nasce em glória, invade o quarto pelas falhas da persiana. a manhã dourada interrompe meu primeiro cochilo.

domingo, 21 de novembro de 2010

Fim de tarde

Chove horrores. A água escorre como lágrimas no pára-brisa, um choro purificante de lavar a alma. Gotas densas, insistentes, tornam toda a paisagem esbranquiçada. E a avenida escorrega por baixo das rodas, o carro todo trepida. O som do rádio desligado e a falta de um diálogo faziam uma pressão nos ouvidos, que agora se acalentam com o tique do pisca que supera o ruído da chuva. O semáforo fechado, uma mancha vermelha acima do horizonte. O motorista suspira apenas, certamente cansado, uma mão apoiada no câmbio enquanto a outra segura a cabeça.

O semáforo abre, o motorista acelera, faz a curva, espirra água. Daqui de dentro só se ouve o barulho. Uma falta de sincronia ocasiona um pequeno congestionamento. Agora sou eu quem suspira. Pela janela, atrás da camada escorregadia de água, na varanda de uma casa, uma velha vestida de preto se apóia num andador e se prepara para dar um passo. A chuva cai, a varanda é aberta, os cabelos da velha molhados, o carro acelera de novo.

Agora é uma reta só, chegamos em casa. A conversa cansada flui naturalmente. O elevador demora, a velha dando um passo. A lembrança se sobrepoem à visão, as pupilas dilatam com a recordação. O barulho das chaves me desperta.

A porta se abre para o oásis – um cheiro adocicado de conforto inunda a alma. Caminho direto pelo corredor – oito passos – a mãe me recebe com carinhos e afagos e um beijo na testa. Pela janela o vento uiva, e a velha dava um passo.

Queria tomar um banho, banho quente que purifique o corpo. Olhos fechados, corpo posto embaixo d’água, dos cabelos agora escorre o cansaço.

Os olhos se abrem em busca do sabonete, a velha dava um passo.


O jantar é servido, a irmã chama meu nome, a velha usava preto e o meu cabelo ainda pinga, a água fria desce pelas costas.

Do lado de fora chovia um pouco menos; do lado de dentro, o feijão estava quente – tão quente que aquece o cômodo, move a conversa e alimenta as risadas. E a velha, ainda dava um passo?

A poltrona é nova, balança e ainda não range. Mais dois capítulos lidos e o cabelo definitivamente seco. Escovo os dentes, apago as luzes, escondo-me por entre o cobertor. Sonho com pássaros coloridos atravessando o Atlântico enquanto um macaco sapateia no Ibirapuera.

Sono longo, denso. Acordo com um susto, ao som do despertador. Levanto-me preguiçosa, dou um passo.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Café, broinha, amor

Depois de anos na mesma rotina, sentia-se até orgulhoso em chamar-se aposentado. Lembrava com glória de todos os seus anos em serviço, porém já preferia este seu novo modo de vida, tranquilo, com tarde inteiras gastas no café da rua debaixo. Fora lá que tomara seu cappuccino de aposentado, acompanhado de broinhas de milho, pela primeira vez, e pela segunda, e pela terceira. Começou como esse passatempo, evoluiu para hábito. O cozinheiro já até o chamava pelo primeiro nome.

E foi lá pela terceira ou quarta semana da vida nova em que, experimentando sentar-se na calçada ao invés de no balcão, viu-a passar. Não era a primeira moça em quem reparava naquela tarde, já que, sentado tão perto do barulho, não conseguia ler, e precisou achar outro passatempo enquanto tomava seu café. Viu moças bonitas, feias, encontrou algumas conhecidas com quem chegou até trocar uma palavra ou duas, e ela – meu Deus, quem era ela? Parecia tão distraída, caminhando na calçada como se vindo na sua direção – será? – moderna e casual. Parou ao lado de sua mesa, apertando os olhos para ler quais eram os pratos do dia. Tinha olhos azuis, talvez. E cabelo moreno, claro, quase loiro. O velho aposentado a encarava, com a boca aberta, segurando uma broinha no ar. Preparara-se para mordê-la, mas distraiu-se tanto que acabou por se esquecer. E assim ficou, como uma estátua abobada enquanto ela ainda decidia se entraria ou não.

Afinal decidiu que não, e virou-se para atravessar a rua. Em algum momento durante este processo, a tal broinha caiu da mão do velho e, rolando, seguiu a moça até bater em seu pé. Com um impressionante desdém, ela olhou para baixo e, identificando a broinha, virou-se para o velho com apenas um sorriso simpático. Ele ainda se encontrava naquela mesma pose boquiaberta que, agora sem a broa, tornava-se um pouquinho mais boba. Respondeu-lhe também com um sorriso, vergonha misturada com charme, mas a reação foi-lhe tão demorada que nem sabe se ela a viu. Já atravessava a rua, cabelos avermelhados ao vento.

Mal posso lhe contar qual sensação foi aquela que dominou nosso amigo aposentado que, tão maravilhado estava com aquele novo acontecimento, nem se ressentiu pela broinha desperdiçada. Foram pouquíssimos segundos, pensava, mas que parecem uma eternidade e meia. Estava maravilhado. E tão ousado que até pediu uma pedaço daquele bolo de chocolate que ainda não havia provado. Será que ela voltará amanhã?, sonhava durante sua caminhada de volta para casa, será? Se sim, puxarei papo, simpático e cordial e... Assim formulou em sua cabeça toda a cena que se seguiria no dia seguinte, se ela aparecesse de novo.

Infelizmente, porém obviamente, ela não voltou. Nem no dia seguinte, nem nos outros ainda. Não que ele já tenha desistido de esperar. Viciou-se de vez. Não há mais manhã em que não acorde pensando nos passos que dará à tarde até o café. O cozinheiro já até deixa o seu pedido pronto, pois sabe que lá pelas três horas da tarde, o aposentado irá chegar e sentar-se em qualquer uma das mesas da calçada, confortar-se na cadeira de madeira, ajeitar a gravata, arrumar o cabelo de acordo com o vento, abrir um livro e encarar impiedosamente a rua, esperando aquela moça passar de novo.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Tardes infinitas


Pés numa sincronia atrapalhada. Girar infinitas voltas com os braços abertos – o vestido se torna um balão. Os olhos fecham de tontura. Um sorriso aparece no rosto, ofegante.

Grama. Poças d’água. Parque. Machucados no joelho. O sono. O sofá. O corpo esguio, estirado nas almofadas. Branca de neve, a fita cassete que falha sempre na primeira fala do Zangado – o que era mesmo que dizia? O colo da mãe. Ou do pai, quem estivesse disponível na hora.

Desperta. Uma fração de segundos passa, e então os olhos estão abertos – simples assim. Às vezes o sono volta, o sonho se renova. Ou não, e então se levanta de sua caminha, a casa adormecida, a meia-luz esfumaçada. Independente, rouba bolachas do armário do meio. A mãe acorda com o barulho, faz um cafuné, dá-lhe um beijo na testa. A franja bagunçada.

O resto da casa desperta. Sol a pino, bate meio-dia. Da cozinha, muito barulho, alguém fala alguma coisa – o quê? Não, nada... A irmã assiste TV, hipnotizada – deveria estar se arrumando para escola! Um quebra-cabeça, 20 peças, espalhado pelo tapete; uma peça se esconde despercebida embaixo do sofá. Será perdida, e logo o focinho do cachorro!... A irmã ri – do quê? Não, nada não... A escada de Lego que nunca dá certo e – droga! – desmorona. Um barulho inunda a sala e a irmã se irrita, perdeu a piada. Almoço, a barriga é pequena, não cabe muito. Confusão. A mãe fala, o pai fala, a irmã se levanta. A porta aberta, o vento bate na janela, o pai acena (“tchau, bebê”), a irmã passa reto, nem liga.

Meio da tarde, brisa fina passa pela janela. Pés descalços no tapete macio, numa sincronia atrapalhada. Girava infinitas voltas com os braços abertos. Os olhos fecham com a vertigem, um sorriso aparece no rosto. Para, cai, deita no chão mesmo, ofegante. O sono, o sofá, o corpo esguio esticado nas almofadas. Poderia dormir até depois desse dia. Branca de Neve, a fita cassete que falha – qual era a fala mesmo? Já até esqueci... A mãe vem, dá-lhe outro beijo na testa “já já eu venho brincar com você”. Expectativa nasce, se opõe ao sono – brincar? Brincar de quê?...

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Grand-mère,

Bolinhos de chuva, leite com chocolate, Chavez e, ocasionalmente, Chiquititas também. Havia ainda certa mesa de centro de tampo de vidro e pernas de madeira maciça, lustrosa, que me serviu de palco para muitas brincadeiras de Lego e construções com massinha. Quebra-cabeças de 50 peças. Passatempos simples em tardes preguiçosas, uma infância inteira, marcada na memória à canetinha Faber-Castell.

Não, espere, volte algumas palavras. Há um porém escondido, o clássico impasse. Acontece que, como toda infante, tinha também uma boa porção daqueles tais prazeres secretos – repensando agora, quase obsessões – que não me permitem chamar a infância de simples. Pois sempre que minha avó terminasse com a limpeza da cozinha ou qualquer outro trabalho de costura que poderia ter, logo sentava no sofá, com um suspiro longo e costumeiro: “Ai ai, meu pai” diria, coçando o topo da cabeça com as duas mãos. E assim que terminasse, eu, sorrateira e discreta, aninharia a cabeça em sua coxa, entregando-lhe um livro. Ela, com um esboço de sorriso, o pegaria forte com as duas mãos “O que teremos hoje? Ruth Rocha, hm, interessante...”

Perdia-se na história, mais do que eu, inspirada pelas ilustrações coloridas. Inventava novos tons, forjava novas vozes, balançava os braços compenetrada em sua atuação. Permitia-se à fantasia, dava-se à liberdade que era contar histórias. E eu, ouvinte atenta, segura e confortavelmente acolhida em seu colo ancião, acompanhava-a para onde quer que fosse, perdidamente apaixonada por todas as inúmeras personagens a que minha avó de repente se tornava.

Mas então, por ordens do destino, aprendi eu mesma a ler. Frenesi, verdadeira liberdade. Agora assim sabia o que era felicidade.

A leitura vagarosa, sílabas cantadas, uma por vez, a frase que se alongava em cacoetes e engasgos, até perder completamente o seu sentido. Agora eu também podia fazer a história no meu ritmo, reinventar personagens ao meu próprio tom. Personificação mais fraca e envergonhada do que a de minha avó, claro. Um novo eu. Outro eu. Mais um eu.

Tenho guardados até hoje, com carinho e orelhas amassadas, os meus grandes clássicos: O Pequeno Nicolau, estrategicamente colocado bem no meio da prateleira; Pollyana, com as últimas páginas ainda manchadas pelas primeiras lágrimas que verti sobre um livro; Matilda, constantemente me lembrando do prazer que me tomou ao comprá-lo, o primeiro livro de minha própria mesada.

Li, li quase tudo o que chegou às minhas mãos. Amei, chorei, sorri – até que passei a criar também. E mais tarde, quando a vida me pediu para escolher entre fazer ou assistir, escolhi continuar a escrever apenas. E de vez em quando ainda entrego meus rabiscos para a minha avó, só para poder, após ajeitar-me confortavelmente em seu colo, ouvi-la contar as minhas histórias com aquele seu antigo vigor apaixonado – já quase característico. 
 
(Crônica ganhadora do 1º lugar no VII Concurso Literário do Colégio Rainha da Paz - em homenagem à minha querida vovó.)

Wednesday, May 15th /Quarta-feira, 15 de maio

(Outra crônica ganhadora do 1º lugar do VII Concurso Literário do Colégio Rainha da Paz, na categoria Lingua Inglesa. Abaixo está a original e, logo depois, a tradução feita por mim mesma)
Wednesday, May 15th
It was the middle of a lazy afternoon. The mother working in a piece of article sitting at the balcony’s old-wooden table, while her fifth-year-old lied on the grass, belly up. The little one was humming. Suddenly, she speaks: “Mom, what’s the sky?”

“What about it, hon?” the mother replies, still staring at the green computer screen. “What is it made of?” Now the mother glances at the child, so innocently lying a few feet from her; she didn’t know what to answer. “Well, I don’t know sweetie, just emptiness I guess.” The little girl twitches her nose. “You lie… How can something be made of nothing?” The mother breathes deeply “my baby” she says “I’d never lie to you. I just don’t really know the answer…”

“Oh” replies the unsatisfied daughter. “But why is it so high above?”

“Because if it wasn’t, it would crush our heads and we’d have headaches all the time, and that wouldn’t be nice, would it?” Mom says, resuming the typing. The girl looks at her, intrigued “but you have headaches all the time, momma, even with the sky high above…”

“Oh, that’s because my headaches are special.” The kid keeps thinking about it, almost forming an idea in her little, childish mind. “Mommy, do you have headaches because I jump on the sofa, even when you tell me not to?” She had a guilty tone in her voice; it made the mother kind of sad. Again, she didn’t know what to answer. “No, baby, not exactly.” The girl was kind of relieved. And so, kept talking: “Mum, did you know that clouds aren’t really made of cotton candy, but actually, of whipped cream, just like the one on grandma’s birthday cake?” The answer she got was automatic, almost distant and cold “Oh, really honey, didn’t know about that…”

There was a little time of steady silence, a couple of birds singing and the mother tipping, vividly, unquestionably in love with what she was doing. It was true catharsis, suddenly she was far away. But a thin voice brought her back: “Mommy, why does the cow go ‘moo’?”

“Don’t know honey. Ask grandpa, he’s a vet.” The girl, disappointed, lifts her arms to try to catch a butterfly that passed lingering by. “Okay” and after a few seconds “when will we see grandpa again?”

“Next weekend, I think.”

“Days, momma, how many days?” The little girl just couldn’t understand why everybody kept talking about weekends and things that she didn’t understand. The mother stopped tipping to count the days “Four days, three nights”, she concluded, and now couldn’t remember what the idea she’d been writing was, and erased the whole sentence.

Not forgetting about the moment that had just passed, the infant continued with the conversation. “Mom, are butterflies made of butter?” A smile shows itself, discrete, on the mother’s face. “I guess not, baby, otherwise it would melt under the sun.” The girl takes a second to think about it: “Oh, yeah” is her conclusion. Contempt with the answer, she continues “I’ve to tell this to my teacher at school, than, because he said that butterflies are made of butter and that spaghetti are actually white warms…” Now, mother stops tipping, frightened, staring at the little infant. “Did he really, baby?” The girl laughs, “Nah, just kidding.” The mother breathed with relieve.

The child resumes humming, moving the arms out and about, as if she was floating. Suddenly, silence. And then a known voice breaks it: “Momma, can grandpa give me a puppy? If he’s a vet he must have lost of them” The mother kind of laughs. “Actually, darling, grandpa only takes care of other people’s dogs. And we’ve talked about this, remember, your daddy is allergic to puppies.” That was not really true, but it was the first thing they could invent – after all, the baby girl didn’t even know what “allergy” meant. “Oh, yeah, I remember… Can I have some chocolate cake, then?” So innocent.

“Of course you can, my baby. Ask your dad, he’s inside. And wash those hands first…” Now the mother was yelling, as the girl was already inside. Bare foot, clothes filthy with mud and dust, she’d walked in as vividly as a five-year-old child should always walk. So curious and grown-up, but yet so little and fragile.

The girl was now eating the piece of cake sitting at the father’s lap, without having washed the hands, and not even imagining that, on a few years, she wouldn’t remember the precise taste of that chocolate cake, nor the feeling of the grass on the naked legs, but would always carry the idea of a blue, gigantic sky, made out of nothing and whipped cream clouds.


 Quarta-feira, 15 de maio
Era uma tarde preguiçosa. A mãe trabalhava em algum artigo, sentada na varanda, na mesa de madeira velha, enquanto sua filha de cinco anos deitava na grama, barriga para cima. A pequena cantarolava alguma coisa. De repente, ela fala: “Mamãe, e o céu?”

“O que que tem, querida?” a mãe responde, ainda encarando a tela do computador. “Do que que ele é feito?...” Agora a mãe olha à filha, tão inocentemente deitada na grama; ela não sabia o que lhe responder. “Ai, querida, eu não sei... Só de vazio, eu acho.” A criança faz uma careta “Você mente... Como pode alguma coisa ser feita de vazio?!” A mãe suspira “meu bem” ela diz “eu nunca mentiria para você! Eu só não sei a resposta...”

“Ah...” responde a pequena, insatisfeita. “Mas por que ele fica tão lá em cima?”

“Bom, porque se não fosse, iria esmagar as nossas cabeças e a gente ia ter dor de cabeça o tempo todo, e isso não seria legal, não é?” A mãe diz, voltando a digitar. A menina a observa, intrigada “mas você tem dor de cabeça o tempo todo, mamãe, mesmo com o céu tão lá em cima.”

“Ah, mas isso é porque as minhas dores de cabeça são especiais...” A criança continua pensando sobre o assunto, quase formando uma ideia na sua cabecinha “Ô mãe, você tem dor de cabeça por que eu pulo no sofá mesmo quando você me diz que não é pra eu fazer isso?” Ela tinha um tom um tanto culpado na voz; a mãe sentiu-se um pouco triste. De novo, ela não tinha respostas. “Não, querida, não exatamente.” A pequena ficou aliviada, e por isso, continuou a conversa “Mãe, você sabia que as nuvens não são feitas de algodão doce, mas, na verdade, de chantilly, que nem aquele do bolo de aniversário da vovó?” A resposta que ela recebeu foi automática, quase distante “É mesmo querida, não sabia disso...”

Houve um breve momento de silêncio. Um casal de pássaros cantava e a mãe digitava, energética, completamente apaixonada por aquilo que fazia. Catarse, de repente estava bem longe dali – então uma voz a trouxe de volta: “Mamãe, por que que a vaca faz ‘muu’”

“Não sei, meu amor. Pergunta pro seu avô, ele que é o veterinário.” A criança, desapontada, levanta os dois braços para tentar pegar uma borboleta que passou flutuando por ali. “Tá bom” e depois de alguns segundos “quando é que a gente vai ver o vovô de novo?”

“No próximo final de semana, eu acho”

“Dias, manhê, quantos dias?” A garota não conseguia entender por que todo mundo insistia em falar sobre finais de semana e outras coisas que ela não conhecia. A mãe parou de digitar para contar os dias: “quatro dias, três noites”, ela concluiu, e já não lembrava mais o que havia começado a escrever.

Ainda lembrando aquilo que havia acabado de acontecer, a pequena continuou “mamãe, as borboletas são feitas de manteiga? ”Um sorriso se mostra, discreto, no rosto da mãe “Acho que não, amor, se não elas derreteriam no sol!” A menina pensa um pouquinho “Ah é, verdade...” Satisfeita com a resposta, ela conta: “Eu tenho que contar isso pro meu professor na minha escola então, porque foi ele que me disse que as borboletas são feitas de manteiga e que spaguetti, na verdade, é minhoca.” A mãe para de digitar e, aterrorizada, encara a filha “ele disse isso mesmo, querida?” A menina gargalha “Não, não, tava só brincando!...” A mãe suspira aliviada.

A pequena voltou a cantarolar, balançando os braços como se estivesse flutuando. Breve silêncio – logo, uma voz conhecida o quebra: “Mamãe, o vovô pode me dar um cachorrinho? Se ele é veterinário, ele tem que ter um monte deles!” A mãe meio que ri. “Na verdade, meu amor, o vovô não tem nenhum cachorro, ele só cuida dos cachorros dos outros... E a gente já falou sobre isso, lembra?, você não pode ter um cachorro porque o seu pai é alérgico.” Isso já não era verdade, mas foi a primeira coisa que eles conseguiram inventar – afinal, a pequena nem sabia o que era alergia. “Ah é, eu lembro disso... Posso comer um pedaço de bolo de chocolate, então?”

“Claro que pode, amorzinho. Pede pro seu pai te ajudar. E lava essas mãos antes!...” Agora a mãe gritava, pois a menina já havia entrado. Descalça, roupas manchadas de lama e poeira, ela andava tão segura quanto uma criança de cinco anos devia sempre andar. Curiosa e crescida, mas ao mesmo tempo pequena e frágil.

Ela já comia o seu bolo de chocolate sentada no colo do pai, sem ter lavado as suas mãos, e sem nem imaginar que, dali alguns anos, ela não iria se lembrar do gosto exato daquele bolo, nem da sensação da grama nas suas perninhas nuas – mas sempre carregaria na memória a imagem de um enorme céu azul feito de vazio e nuvens de chantilly.

sábado, 23 de outubro de 2010

Chora porque...

Chora porque pela cabeça passa em câmera lenta as memórias preto-e-branco de anos e anos de vida, que lhe dão saudade e um aperto no peito.
Chora porque sabe que tem experiência, que já esteve naquele lugar várias vezes antes.
Chora porque, mesmo com tanta experiência, ainda fica com as mãos geladas e a garganta seca, como se tudo fosse mesmo novidade. 
Chora porque os músculos -principalmente os das pernas- queimam com o alívio e satisfação de saber que tudo correu como o planejado.
Chora porque o coração lhe dita com palavras coloridas a história do caminho que correu -as inúmeras tardes e manhãs em que, sempre com suas sapatilhas, viveu seus maiores sonhos.
Chora porque a imagem que vê é linda, vista de cima de um palco oco de madeira, praticamente um lar
Chora porque dançara, porque se fantasiara e se preparara para dançar, então fora prestigiada e depois ainda, aplaudida. 
Chora porque sente um enorme e verdadeiro afeto por aquelas pessoas que estão ao seu lado, apertando-lhe as mãos. Chora porque sabe que aquilo que sente é, na verdade, uma mistura adocicada de amor com orgulho, de alívio e satisfação.
Chora porque convém -já que todo coração tem limite.
Chora porque está muito feliz.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Pressentimento

Deitada na grama, posição fetal como uma concha, só que solitária. Uma das mãos espalmada sobre os olhos, protegendo-os do sol – uma escuridão forjada. Uma formiga sobe-lhe o cotovelo, mas está tão absolutamente inerte que já nem percebe quando o mundo a toca.

Longe, uma marolinha tímida se levanta na represa e bate na lama. Tudo bem, nem barulho faz. Dois ou três passarinhos travam um diálogo, risos e muitas interlocuções – parecem se divertir. As folhas das árvores mais próximas chilreiam, galhos rangem com a brisa que passa, e ela dorme. Uma mosca, zumbido constante em seu ouvido; não acorda, apenas desperta. 

Encontra cores navegando pelo ar. Sabe que sonha. Vê edificar-se ao seu redor um jardim, algo que jura já ter visto antes, mas onde? Ninguém sabe. Traz calma, porém. Sorri, pois tudo era tão bonito. Mas então, em um parque de diversões – luzes, brilhos, risos – é envolvida em um abraço, protegendo-a do relento que cai sobre o carrossel. Não é que faz frio, mas é que tudo fica melhor assim. 

Do lado de fora alguém a chama – é alguém querido, mas quem mesmo? Não importa, já sente pelo timbre da voz que aquele alguém a queria bem. Alívio. 

Será que deve ir? Pois ir seria sair deste sonho, que neste exato momento, levava-a andando a cavalo por entre um campo de margaridas azuis e vermelhas. É, talvez deva ir mesmo assim, e ver para que a chamam. Pode ser importante, não é? E pode ser que, mesmo que as flores desapareçam com o abrir de seus olhos, o céu continue azul e alguém a ame.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

VII

(VI)
Seria compaixão aquilo, afinal, aquela vontade inconstante que crescia ardente no peito sempre que via alguém derreter-se em lágrimas ao seu lado - ou será que era apenas inveja?

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Noturna

Sabe-se lá quando a noite se tornou uma tormenta. Sabe apenas que há semanas atravessa as madrugadas dada à escuridão, silenciosa, enclausurada no tédio. Ouve o movimento distante de carros e gatunos, imagina o dobrar das árvores que farfalham, pensa nas pessoas que dormem nesse exato momento. O que fazer, o que fazer, o que fazer? Nada. Não tem vontade, ou mesmo a mera concentração. Pega em um livro, escreve uma frase, logo desiste. Prefere permanecer parada, quase empalhada, sentada em sua poltrona que a manterá aconchegada nessa espera aparentemente eterna pelo sono. Olha para frente, mas não enxerga nada. Pensa, pensa muito, mas em nada que se lembrará na manhã seguinte. Não chora, pois não há motivo - é apenas  uma insônia, não há nenhuma tristeza por trás. Há cansaço, muito, que lhe pesa principalmente nos ombros e no pescoço, fazendo latejar também a cabeça e dar uma sensação de ardência contínua nos olhos, mas o sono, propriamente dito, não vem. E se vem também, é perturbado. Traz certos sonhos que a fazem acordar ainda mais cansada e sem entender absolutamente nada, já que, à primeira luz do dia, todos se dissolvem no esquecimento completo. Encara o relógio, os minutos andam... O que fazer, o que fazer, o que fazer?

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Nota:

Dei-me para o silêncio, passei algum tempo me concentrando apenas no mundo real. De verdade, não gostei. Logo me cansei daquela rotina massante - sem versos, sem graça - e agora volto correndo para esta vida aqui. Milhares de ideias se passaram pela minha cabeça (poesia é incessante, incontrolável), mas na terrível tentativa de manter os dois pés presos no chão, acabei espanando-as todas para longe - perderam-se no eterno esquecimento. Pena, poderiam ter sido as minhas melhores frases. Mas, como disse antes, agora volto, com bastante energia acumulada para a invenção de mais historietas, além da recém iniciada busca por editoras (santa coragem!).

(Já até voltei a carregar meu caderninho de anotações na bolsa. Espero assim desperdiçar menos ideias.)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

VI

(V)

Reinventara-se. Sorria convincente e bocejava bastante. Será que - finalmente- aprendera a ser humana?

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Liberdade

Tinha grandes dentes tortos e cílios tão grandes que até faziam sombras em suas bochechas; estas, por sua vez, eram também muito demarcadas. Sorria com facilidade, mas evitava dar risada, pois sabia o quão irritante a sua voz podia ser. Porém, quando lhe era completamente inevitável, e uma gargalhada se formava no fundo da garganta, ria como um babuíno febril, expondo as grandes gengivas rosadas e os dentes amarelos pontudos.

E assim existia. E também vivia, afinal não há existir apropriado sem nenhuma forte chama vivaz hesitando em algum lugar da alma – porém, nela a tal vida queimava escondida, debaixo de sua pele, longe da vista do mundo. E por viver apenas, sabia que não devia exigir nada dos outros – nem amor, nem ódio, nem pena. Um simples olhar de reconhecimento de sua existência, mesmo de longe e de leve, já lhe era o bastante.

Mas, vai perceber que neste momento sobre o qual lhe falo, ela não se importava muito em existir. Pois já era fim de tarde, e tudo lhe parecia um pouco embaçado. Estava no ônibus, voltando para casa, apertada entre homens e mulheres que não pareciam se preocupar muito com a sua presença, e insistiam em pisar-lhe no pé ou tossir em sua orelha. Calma, como sempre, suportava tudo aquilo e perdoava-os, pensando que eles também deveriam estar tão cansados quanto ela.

Ouviu-se alguém dar o sinal para descer, o motorista logo percebeu e aproximou-se o máximo possível do ponto. Duas pessoas desceram, sete subiram. Houve uma rápida movimentação de braços e apertos, apenas de acordo com possível, e logo mais o ônibus voltou ao sofrível movimento. Pena foi que precisou frear quase que imediatamente, por causa de um certo carro que resolveu cruzar-lhe pela direita. A freada foi brusca, e o som das buzinas durou ainda alguns segundos, ressoando pelos ouvidos. Desequilibrados, alguns pisaram em falso, e outros deixaram suas mãos escorregar de seus apoios, tendo que se apoiar em quem fosse que estivesse por perto. Ela, porém, não desequilibrou ou mexeu um dedo sequer, mas levada por uma avalanche desenfreada, foi esmagada contra um assento, batendo a sua cabeça em um cano de apoio. Foi consideravelmente forte, tanto que ainda ficou um pouco desnorteada. Sozinha, sem receber nem a mínima consideração de qualquer um daqueles ao seu redor, recuperou-se forçadamente e, agora já violentamente, abriu o seu caminho para a porta.

Acontece que havia se cansado. E já não querendo mais nada daquilo, desceria do ônibus e continuaria seu caminho a pé e – principalmente – sozinha. E assim o fez: assim que conseguiu alcançar a porta, todos ouviram desatentos à sua vontade de ir embora. No quarteirão seguinte, o ônibus parou e escancarou-se, enquanto ela descia em pulos atrapalhados.

No ponto, sozinha, viu-o ir embora. Até o acompanhou com os olhos, não que isso tenha qualquer significado magnífico. Olhou para a rua que logo mais deveria seguir; estava a mais de cinco quarteirões de sua casa, mas não se importava – só se importava em respirar aquela liberdade que sentia agora. E, só para afirma-se mais um pouquinho com a nova sensação, espreguiçou-se demoradamente, com os braços bem alongados ao léu, alongou o pescoço, e então colocou as mãos no bolso, pois estas estavam tão estranhamente livres que mal sabiam o que fazer.

Caminhava então, passo a passo, sozinha. Olhou para uma ruela e pensou que, se assim quisesse, poderia segui-la - mas como simplesmente não queria, seguiu adiante. Era-lhe  tão novo que quase embriagante. Gostava daquilo, daquela sua liberdade recém encontrada, que a permitia até respirar no ritmo que bem quisesse. Sentia-se satisfeita. E assim, mas talvez só assim, era feliz.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

V

(IV)

Andava estranha - não sorria, não chorava, perdia o interesse facilmente. Nem do escuro temia mais. Incomodava-se com aquela nova falta de sensibilidade que crescia - e só assim sabia que vivia. 

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

O que só sentido vê*

É Maria do Céu Whitaker Poças - ou apenas Céu. Cantora e compositora brasileira, começou sua carreira em  2002, já chegando ao topo de rankings internacionais com o seu primeiro disco, Céu, de 2005. 

São batidas eletrônicas sob grande influência de ritmos africanos, é o samba, com o rap, jazz, reggae e às vezes um pouquinho de hip hop também - tudo misturado com letras inovadoras e uma voz áspera, porém muito envolvente. Não restam dúvidas de que Céu é uma grande promessa para a música moderna brasileira, e merece nossa atenção. Além do mais, é uma diva ao vivo.

Ontem mesmo, 12 de agosto, fomos assisti-la no Citibank Hall. Foi maravilhoso, acho que todos nós concordamos com isso. Toda a produção do show estava ótima, desde a iluminação até a set list, tudo muito bem feito. Porém, na verdade, no fundo no fundo, tenho certeza de que se a Céu estivesse sozinha no meio do palco, só com um microfone na mão, o show teria sido maravilhoso igual - pois aquilo sim que é presença de palco, poxa vida! É certo que me faltam muitas referências, afinal, não sou uma grande frequentadora de shows, mas nunca tinha visto uma cantora mostrar tanto amor pela sua própria música. Há uma vibe muito especial que ela traz para suas canções, que faz tudo muito mais interessante, muito mais bonito.

Se, por acaso, ainda não conhece as músicas de Céu, lhe sugiro que não perca mais tempo.  Malemolência talvez seja a mais conhecida do primeiro Cd, enquanto Ponteiro é uma das minhas favoritas do segundo disco, o Vagarosa - é uma daquelas músicas que sempre me dominam com sua batida incessante, e  me dão essa vontade incontrolável de sair dançando, não importa como nem onde. É ótimo. E eu acho que irá gostar também.


*Sobre o Amor e seu Trabalho Silencioso, Vagarosa.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

IV

(III e III)
A brisa - fina e incolor - passava pelos seus cabelos tirando-os do rosto, trazendo à vista aquela expressão que sempre carregava nas sobrancelhas: um procurar adociado com o tédio.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Almas à Venda - almas?


O filme "Almas à Venda", mais ou menos recente nos cinemas de São Paulo, é o primeiro longa da diretora e escritora Sophie Barthes. Nele, o ator Paul Giamatti (conhecido também como "Ah, aquele cara!", antes de passar a ser lembrado como "Ah, o barbudo que fez Sideways") interpreta Paul Giamatti, um ator passando por uma fase emocionalmente complicada de sua carreira em que, frustrado, acha-se "misturando" com o seu personagem de sua próxima peça, Tio Vânia do russo Anton Tchekhov. Assim, Paul acaba conhecendo, através de um amigo e uma reportagem no New Yorker, de uma empresa/clínica removedora de almas, que propõe serviços variados, como uma troca ou apenas a estocagem temporária.  E ainda aceitam cartão de crédito. Seduzido pela possibilidade de se livrar - temporariamente - de seus problemas (por mais apavorado que estivesse com a ideia absurda de remoção de almas) Paul vai até ao tal lugar, fica desalmado, e então a história se desdobra, um pouco dramática com toques de humor. 

Com certeza, podemos encontrar por aí milhares de comparações entre o "Almas à Venda", "Quero ser John Malkovich" e "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças"; com as quais, claro, "Almas..." acaba perdendo um pouco de seu charme, já que não supera de jeito nenhum os outros dois mencionados. Afinal, ao longo do filme existem algumas falhas de roteiro, mas só alguns detalhes, aqui e ali, que quase desaparecem quando no todo. E também Dina Korzun, que interpreta Nina, a mula de almas russa que acompanha fielmente Paul em uma parte da história, me pareceu muito bland, talvez até demais - se bem que, se considerarmos o contexto e forçarmos um pouquinho, podemos perdoá-la por uma performance exagerada. Giamatti, porém, está ótimo ao natural, com aquela cara irremediável de loser sem esperanças.


Mas, uma resenha deste filme não estaria completa - nem correta - se não levantarmos a questão mais importante, que molda e dá sentido pra todo o filme: a alma humana.

Afinal, você se livraria da sua, se houvesse essa possibilidade? - é o que eu me perguntei durante todo o filme. Pois todos nós temos períodos ruins, algumas crises e dilemas, faz parte da aventura de viver (perdoe-me o clichê inevitável) mas não são todos que conseguem seguir em frente sem grandes sequelas. E o que se faz então, se a cicatriz que lhe impede de viver está cravada n'alma? Livra-se dela, simplesmente assim? Então depois, vive-se literalmente desalmado, ou se aceitar um outro serviço da empresa, com a alma de uma outra pessoa, só para evitar aquele sentimento angustiante de tédio e de vazio - pois eles existem, mesmo quando sem alma. 

Mas, veja só, se tédio e vazio podem ser traduzidos, de acordo com alguns poetas do mundo, em tristeza, temos então uma evidência de que não é a alma que nos faz sofrer, pois talvez não é seja na alma em que se abrigam essas sensações e carências. Contudo, se não é isso o que a alma abriga, para que serve então? Seria ela, de fato, a raiz de nossos problemas e crises emocionais? Ou seria apenas, como afirma um personagem, "mais um órgão", peculiar e único.

Bom, eu não sei. Tenho tentado descobrir, é verdade, mas ainda não consegui chegar a nenhuma conclusão satisfatória, pois toda vez que pareço avançar um passo acabo me encontrando com dúvidas ainda maiores e piores. Saí do cinema um tanto atordoada, cheia dessas questões me martelando a cabeça, e fui logo procurar conforto em uma boa xícara de cappuccino. Quente, com um forte gosto de canela, descia pela garganta enquanto eu me perguntava 'Será que foi a minha alma que me fez sentir isso assim?'. Ao descer do ônibus, voltando para casa, quase tropecei, levei um susto e senti um nó se formar na boca do estômago, enquanto eu me perguntava 'Será, mas será mesmo, que foi essa minha alma - e minha alma apenas - que me faz sentir este medinho de cair na rua? que me inibe de colocar uma vírgula a mais em um texto? que me ajuda a me definir minhas posições diante da vida?'

Não sei se um dia chegarei a alguma conclusão. Também não sei se quero, ou mesmo se deveria, já que foi o "Progresso. O triunfo da mente" que - teoricamente - possibilitou o desenvolvimento de técnicas removedoras de almas. Por enquanto, pararei esses meus questionamentos. Claro, se algum dia chegar a algum lugar, aviso para vocês. No momento, só posso afirmar que não - não removeria minha alma, nem mesmo por um curto período de tempo. E eu  também os convido a assistir o filme "Almas à Venda" e a, talvez, chegar às suas próprias conclusões. E me contá-las depois, claro.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

III

( I e II)
Olhava pela a janela - harmonia, frescura, um pássaro azul que voava a sua frente - e então para o espelho, perdendo-se em desesperança. O que foi que fizera para descobrir-se assim?

quarta-feira, 7 de julho de 2010

II

( I )

De bochechas coradas. Era assim que sempre ficava quando diante daquele desafio que era viver - não apenas resistir; viver.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

I

Era incerta como o tempo, mas resistente como o rochedo à beira do mar. Perguntava-se se em algum dia sentiria também em si aquela sensação pulsante como a de uma flor que só agora aprendeu a ser bonita.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Devaneios em uma quinta-feira à tarde

Acima de qualquer incomodo que sentia, o que mais lhe doía era esta falta de liberdade para sonhar – pois agora sabia como poderia lhe ser perigoso. Era por isso que o seu coração cansado, suspirava. Mas ela sabia que um dia – distante, é verdade – algo ou alguém a levaria para outro lugar. Bem sabia também que neste lugar as rosas seriam mais vivas e a neblina não traria medo. É claro que estava errada – e tão cega que não percebia o quão errada estava. E continuava errando: sonhava clandestinamente, apenas pela graça de poder esperar por algo mais durante todas aquelas longas horas que a consumiam. Incomodava-se com o erro desconhecido e pulsante que a envergonhava e confundia sem deixar nenhum espaço para a compaixão. E assim, continuava sem entender porque uma ou outra lágrima escorria de seus olhos, mostrando para o mundo que ela – também – mantinha guardado dentro de si todos os enganos inexplicados que lhe acompanhavam a vida inteira. Mas ela acreditava, por mais que sem tantas esperanças, em uma calma que viria tirá-la daquele mundo horrível; era deveras cruel viver uma vida como aquela. Não sabia ainda, porém, o quanto é comum sentir arder esta bagunça de milhares de sensações dentro do peito que acha que tem a obrigação de esconder-se ao máximo. De quem? De todos aqueles que sentem as mesmas coisas, quase todos os dias, mas também fingem que não. Tudo isso lhe era em demasia incompreensível, pois ela, como já disse algumas vezes antes, viveu sua vida submersa em um mundo próprio e fantástico, que a deixava acima de qualquer sensação vã que a simples alma mortal é criada para sentir. Ora, desculpe-me pela confusão que posso estar fazendo, devo dizer isso direito: sua própria vida despiu-a de armas e a jogou aos lobos. Começava agora a sentir a dor aguda e penetrante das verdades mais afiadas no corpo sem mais nenhuma proteção, um a um, os golpes selvagens que lhe rasgavam a pele e a faziam sangrar, sangue puro demais para ser exposto. Não lutava, porém, tampouco revidava...

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Reconhecimento

A cidade, a cidade - onde está? Através de mim, de meu corpo e consciência. Sempre esteve aqui e eu, bom, eu nunca estive só afinal. Durante os tantos finais de tarde e começos de manhã, enquanto a névoa esbranquiçada se reafirma no ar e eu vago pelas ruas procurando meu sentido, ela está em mim. A cidade me percorre, também me constrói. Me edifica. Me concretiza. Me transforma e nunca me abandona. E enquanto os calcanhares batem em marcha cansada sobre o asfalto gasto - é então que a cidade me domina, me acalma.
Fazer parte de algo grande - sim! é o que sempre desejei. Não preciso mais, porém, já que agora sei que este algo grande faz, na verdade, parte de mim.

domingo, 30 de maio de 2010

Satisfação

Quando se lembrava da grama que roçava em seu pescoço, estremecia. E sentia alguma coisa balançar em si, na altura de seu estômago - um pouco mais acima, na verdade - algo que já havia sentido antes, inchado, pesado, prestes a estourar.
Levantou-se. Sorria. Suas bochechas coravam. Amava, sabia. 
Amava aquele algo novo que pulsava dentro de seu peito, com um tique um tanto nervoso mais que a certificava que ainda existia. 
Amava as palavras que agora saiam de sua boca, criadas pela sua própria imaginação, sem nenhum controle ou aviso prévio - tudo em si era imprevisível. Mas depois de tantas idas e vindas em si, sabia já o que havia de amar e o que se podia muito bem desprezar ou até ignorar. E aquilo - ah, sim! aquilo podia amar, com bastante ternura.

terça-feira, 25 de maio de 2010

O dia em que a noite não veio - special preview

Talvez deva lhe explicar algumas coisinhas antes. Bom para quem não reconheceu o título da postagem, o texto a seguir saiu do livro que ainda (sim, eu sei, ainda) está em construção. Há muito tempo, vêm me cobrando spoilers e justificativas, e sempre as contornei com respostas vagas e envergonhadas. Porém, aqui está: a primeiríssima parte do livro.


Que o leitor já me perdoe, há certa urgência que não pode ser evitada e/ou ignorada. O caso é grave.

O que lerá nas próximas páginas não é um relato autobiográfico, tão pouco uma leitura relaxante; é uma história um tanto turbulenta cheia das mais puras verdades do mundo. Talvez nossos mundos sejam diferentes por causa de nossas companhias, entende o que digo? Perceba que você tem pessoas ao seu redor, de propósito ou sem querer, que lhe conhecem ou não, que importam ou não. Mas que são pessoas do mesmo pão, do mesmo vinho, com mentes tão perturbadas e dúvidas tão confusas quanto as suas. Eu, por minha vez, tenho Yolanda. Logo verá o que isso significa.

Meu dever é na verdade simples, mas a protagonista ainda é modesta demais para fazê-lo. Devo contar-lhe algo antigo, já há muito esquecido, mas foi violentamente relembrado pelos famosos truques do bendito tempo impiedoso. A memória já nos incomoda demais, e torná-la pública é o melhor que podemos fazer. O que nos amedronta é, na verdade, a quietude – nela não há compaixão. Somos muito medrosas leitor, Yolanda e eu, retrocedemos à irracionalidade do medo, e nos apavoramos mais e mais enquanto as nossas lembranças nos confundem e enganam, enfim indo embora, insensíveis. É daí que vem toda a urgência e aflição que aumentam a cada dia que passa. Parece-me ainda que o tempo tem passado mais rápido do que de costume, engolindo as horas e dias inteiros, como se nunca nem tivessem existido. Por exemplo, olho de relance a janela aberta à minha frente e percebo que já escurece. Sentei-me aqui no fim da manhã para organizar esta escrita. Mas um dia se foi, incontrolável e ligeiro, e nem percebi suas horas passarem. Estamos no fim de agosto, mas ainda me lembro dos sabores da ceia do Natal passado como se tivesse sido ontem. As horas correm, os dias acabam e nossas lembranças não têm nem tempo para se renovar. Sufocadas, perdem-se e misturam-se. Por isso devemos contar esta história, a tinta, para que ela possa existir na memória de outros também, além de indefinitamente gravada em folhas de papel.

Mas me encontro como escritora acidental, e lhe escrevo pois é necessário. E em um único suspiro sincero, confesso que não nasci para palavras. A caneta hesita muito entre os meus dedos e as linhas no papel parecem vacilar – não sinto queimar dentro de mim o espírito escritor que lhe dará grandes quantidades de criatividade e encanto. Não faço arte com as palavras; eu formo frases. Singela organização das palavras mais simples na sua forma mais racional. Posso prometer-lhe horas passadas, nostalgia e verdades resmungonas. Como sempre fui muito pequena para as sensações e grande demais para observações, ofereço-lhe fatos. Apenas fatos. Mas não se aborreça, leitor. A história verdadeira, a que deverá pulsar em suas veias, é algo que deve formar-se apenas em ti – somente os fatos lhe são necessários para isso.

Pergunta-me, e com razão, por que aceitei essa obrigação de contar-lhe essa história, se desde já conheço a confusão e o provável desgosto do pobre leitor. Respondo sinceramente: por mais que não entenda a minha narração perturbada, farei Yolanda imortal em minhas palavras. Garanto-lhe que pelo menos isso vale a pena.

E enquanto hesita em virar a página, eu hesito em começar a escrever o primeiro capítulo, e Yolanda espera impaciente para ser lida e analisada. Mas respiro fundo enquanto as próximas frases se formam em minha cabeça, Yolanda sentada ao meu lado batuca na mesa, a caneta parece se mexer sozinha entre meus dedos nervosos, e agora começo a ficar mais tranquila, pois talvez escrever fique mais fácil ao longo das páginas. Talvez. Vejamos, pois começo agora a me lembrar da primeira vez que nos vimos e quando toda essa, permita-me chamar de loucura, começou.

Sinto já a necessidade insana de escrever correndo por entre meu corpo, minhas rígidas mãos estão livres de mim – é verdade o que dizem, é uma boa sensação. Não se perturbe mais com a minha ansiedade vazia, já sei o que fazer. Prepare-se, pois seu mundo vai girar.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Reparando atrasos

Eu acredito que existe um motivo para tudo. Às vezes explícito e às vezes camuflado nas entrelinhas dos acontecimentos corriqueiros, mas ele sempre existe. Portanto, criei este blog por um motivo. Não apenas para ter um espaço de publicação desses meus escritos tortos e por vezes impertinentes. Não, não. Sofri, antes de tudo, as influências de uma pessoa muito querida, que quando se tornou blogueira, abriu um novo tópico de conversa – e praticamente um novo mundo – para todo mundo lá em casa. Depois de quase um ano e meio, percebo que nenhuma vez mencionei tal pessoa, e acho que é hora de reparar essa grande falha.

Pois imagine então que eu, nos meus poucos sete anos, a vi entrar na minha vida. Do pouco que me lembro, vem logo a memória de um fim de tarde escuro, minha irmã na sua disposição costumeira, já fazendo conversa e piadas com referências que eu absolutamente não entendia, enquanto meu pai radiava com o brilho de mil sóis. Sempre fui garota de muita vergonha e poucas palavras, e pelo o que me lembro daquela noite, quase não estabeleci contato. Claro, tudo correu bem, e sabíamos então que havia uma nova pessoa em nossas vidas. Mesmo assim, durante algum tempo ainda não a chamava pelo nome e não sentava ao seu lado no sofá, nem mesmo nas longas tardes que passávamos desenhando. Houve um dia, porém, em que toda a família passeava, e ao atravessar a rua, ela segurou a minha mão. Simples reflexo, talvez, ou então uma genuína intenção de auxílio. Não sei, só sei que foi o bastante para terminar de me conquistar.

Pouco tempo depois disso, já não via nenhum problema em contar aos outros as histórias que ‘a namorada do meu pai’ havia me contado. E quando passei a empregar o termo ‘madrasta’ de uma vez, tive que suportar as controvérsias e piadas – afinal, boadrasta caberia melhor. Logo, toda a sua família também passou a ser, em certo grau, minha. Claro, as relações são complicadas para se explicar a terceiros, mas no final todo o esforço vale à pena.

Eu cresci. Ela também. Eu mudei. Ela também. Mas ainda a vejo como uma das pessoas que mais influencia minha vida – sem ela, não haveria paixão por Clarice, bolsas de pano, livros infantis, blog, suco de carambola... Uma boa parte de mim ainda estaria adormecida.

E para quem quiser conhecer um pouco mais desta de quem falo, estão a seguir os links para alguns de seus blogs, que tanto fizeram mudar a dinâmica  familiar e as conversas na hora do jantar.





Te adoro querida, e obrigada por tudo. 

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Ah, breve insensatez


E o que sentia então, era aquilo real? Os carros que passavam à sua frente, a toda velocidade, todos eles de fato existiam? Pois por um segundo, se fechasse os olhos levemente, se encontraria de novo sozinha, perdida em si, tonta com o zumbido forte da vida ao seu redor. A maré viria, sabia bem. Logo no horizonte, a paisagem verde e montanhosa se desmanchava, como uma pintura que derrete. Correra, sentira abaixo de seus pés o asfalto quente e incerto que poderia traí-la a qualquer momento. Acima de sua cabeça, conseguia ver, milhares de quilômetros de ar. Puro ar, e nada mais.

Sabia, ao olhar o farol fechado, que aquele era o seu momento de andar - suas pernas, porém, já haviam desistido de responder aos seus estímulos confusos - até mesmo o seu corpo a abandonava de vez em quando. Estava acostumada com essa sensação. Olhava para os lados, esperando com que os carros avançassem - talvez para cima dela, por que não? - desesperadamente esperando desculpas para ficar parada naquela esquina por mais algum tempinho. Sua mente se esvaziava. De novo, um despertar de seu coração a avisava que a maré logo mais chegaria.

Em suas mãos não cabia mais o tempo que desperdiçou procurando a vida simples. Seus braços fraquejavam, pareciam pesar toneladas, pendurados de seus ombros já arquejados com a culpa e o desanimo do mundo. Sentiu um buraco abrir-se bem na altura de seu peito, de dentro para fora, todas as suas dores em uma explosão que não pode ser contida. Chamou-a de fome, e não mentia. Tinha, afinal, fome de tudo o que via: queria ser, queria ter, queria existir para os outros naquele mundo que, simplesmente, não fora construído para ela. Motos e carros passavam, seus cabelos esvoaçavam, suas pernas tremiam. A angústia crescia na garganta, enquanto via no horizonte a água subindo lentamente

Não poderia evitar, com isso já havia se conformado. Pois então, o que faria agora? Tudo o que lhe cabia naquele momento seria, talvez, largar-se. Para o mundo, para a vida, para deus - tanto faz. Com tantas tormentas premeditadas, a única coisa que considerava viável, era desistir. Não sabia para quem, não sabia por que. Mas iria, sim sim. E tudo ficaria melhor. Iria, não duvide! - se ao menos pudesse atravessar aquela rua.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Aquela quase náusea


Digamos que são tempos remotos.
Considere um mundo saudável e limpo, uma sociedade igualitária e pacifista. Pense em uma unanimidade conquistada através de debates tranquilos. Transparência, razão e fé sempre muito equilibrados. A sensibilidade e a tolerância presentes em todas as ocasiões, em proporções razoáveis. Imagine estrelas no céu, noite após noite, milhares por pedacinho considerado.
Agora, inverta tudo.


Digamos que é tempo, imediatamente agora.

Considere a humanidade perdida em meio a tanta ambiguidade caótica. Pense em uma raça inteira retrocedendo, movida pela ganância e o cinismo. Pense em um mundo morrendo, em ruas sujas e violência. Uma juventude inconsequente e imediatista, valores subvertidos, excesso de informação mal interpretada.

Imagine o pobre personagem principal de nossa história, vendo tudo isso acontecer diante de seus olhos puros e desprotegidos, sentindo-se pequeno e insuficiente enquanto inúmeras soluções passavam pela sua imaginação.

Sabe por que tudo isso? Sabe por que essa história é sobre ele, e não seu vizinho?

Ora, pois ele – e aparentemente apenas ele – ainda se importava com o mundo ao seu redor. Sim, e magoava-se com as nuvens cinza que preenchiam os céus. Cada ferida do mundo ardia intensamente no seu enorme coração. Existem outros com ele, eu sei, espalhados por aqui e ali, mas hoje, é ele que me importa. Por quê? Pois eu, e talvez somente eu, conheço a história daquela única noite em que se sentiu pronto para desistir do mundo como o tinha – e acho que todos deveriam saber o que foi que o impediu.

Incansável, afinal, permaneceu através da noite, sentado em sua velha escrivaninha defronte a janela. A noite abafada passava por ele, nem uma brisa sequer havia o alcançado. Abraçava os joelhos bem perto do peito, seu nariz escorria irritantemente, mas ainda não sentia vontade de fazer algo para impedi-lo. Já não mais chorava, se é isso o que pensa. Na verdade, as lágrimas haviam cessado há algum tempo e apenas o nariz manteve-se, teimoso.

De súbito, levantou-se pisando por entre folhas e livros. A mesa rangeu, mas decidiu ignorar – havia decidido que iria ignorar coisas a partir de agora. Quando bem o desse vontade, fingiria não ouvir e pronto, ninguém o faria mudar de posição. Ajustou a postura - costas eretas, cabeça erguida observando bem longe a vida na cidade. Sentiu-se grande de onde estava, mais alto do que o mundo, bem acima do nível mundano. Olhou para baixo, para a calçada quase escura que se estendia vazia ao que pareciam anos-luz de sua janela. Assustou-se. Um calafrio lhe percorreu a espinha, sentiu o estômago gelar. Vertigem, tontura, quase medo. Fechou os olhos e respirou fundo, esqueceu-se ali por alguns segundos.

Calma, só não pense que é assim que nossa história acaba – não, não. Tudo isso é apenas relevante pois, exatamente naquele momento – de pé em cima da mesa – o nosso personagem principal começou a perceber o quão insano havia sido nas últimas horas, enquanto sentara-se sozinho em seu quarto escuro, revisando e reconsiderando todos os aspectos de sua vida. Conhecendo-se tão bem quanto julgava conhecer, sabia que nunca iria cumprir com as promessas que havia se feito. Afinal, se conseguisse, era assim que as coisas seriam: ele, voluntariamente aprisionado em seu quarto enquanto a vida acontecia lá fora. E até se aceitaria em um mundo particular – seja essa qual fosse – e ignoraria as consequências. E as dores e sentimentos. Não era disso o que precisava, e o que sempre o diziam?, precisava de uma dose um pouco maior de egoísmo no sangue para viver a vida direito.

Afligia-se ao pensar na cena, ao pensar na possibilidade de se tornar mais um desses que agora tanto adorava criticar. Sabia que nunca seria capaz de fazer algo do tipo, não apenas por vergonha mas também por falta de caráter. Havia vivido tempo demais dentro de sua pequena bolha para saber como agir de acordo com a tal malandragem inconsequente de que tanto falava. Era-lhe tarde demais.

Virou pelos calcanhares, olhou para o quarto penumbrento com os olhos entreabertos. Sua cama amassada esfriava estática, a cada minuto que se passava com ele na janela. A porta fechada, bem na sua direção, o guardava a salvo de um mundo de questionamentos e comentários infames - por que estava de pé em cima da mesa? havia chorado? Tudo isso porque se importa! O altruísmo está lhe fazendo mal à saúde, coitado... 

Coitado. Coitado! Inquietava-se até, forçava-se a respirar fundo. Preferia não pensar sobre isso agora.

Considerou por alguns minutos: se não pensasse sobre isso agora, pensaria sobre o que então? Nada mais passava pela sua mente senão a expressão enrugada de seus conhecidos entortando a cabeça e o chamando de exagerado. Naquele momento, não conseguia sentir mais nada senão fraqueza, pois sabia que estavam todos certos, e que a culpa seu sofrimento, no final das contas, era toda sua mesmo.

Mas o que podia dizer para explicar-se? Sabia que havia considerado – e até se prometido, há apenas alguns minutos atrás - mudar uma ou duas coisas em sua conduta e forma de ver o mundo. Teria de treinar-se e controlar-se, claro, mas conseguiria e eventualmente os benefícios viriam para lhe confirmar tudo o que sempre lhe disseram - assim tudo seria bem melhor.  Sabia também, entretanto, o quanto era insano, por motivos já esclarecidos nos parágrafos anteriores.

Desceu da mesa e andou até o meio de seu quarto. E então, não sabia mais para onde ir. Ficou parado ali mesmo, envolvido pela escuridão maciça, quase como um abraço fofo que aos poucos de desmanchava.

Aquela sensação, a que causara toda essa situação desconfortável, era recente. Lembrava-se de um dia não ter se importado, e de ter vivido a sua vida paralelamente a dos outros. Não era desde sempre que sentia aquela quase náusea ao ver seus colegas comportando-se como animais, selvagens e incontroláveis, para esconder evidências de atos delinquentes – lembrava-se tão bem da cena que até o fazia mal: um homem de quase dois metros de altura, parado bem à sua frente com uma postura consideravelmente respeitosa e lambendo os pulsos literalmente, para apagar provas de sua desonestidade. E as mentiras – bom, e as mentiras? Sabia muito bem o peso de seus argumentos nessa posição, sabia muito bem o quanto podia criticar, mas não podia evitar chatear-se!

Foi até a sua cama, deitou-se. Preferia deitar-se quente e confortável a ficar parado no meio de seu quarto, esperando com que esses seus pensamentos tristonhos fossem embora. Porém nada mais estava quente, e a sua falta de sono o aborrecia.

E o que fazer agora?  O que queria mesmo era levantar-se, caminhar até a rua, e talvez ainda não parar de caminhar até que encontrasse com a vida dos outros, longe o bastante de seu quarto e de sua consciência – queria apenas, por uma noite em sua vida, ser como todo mundo e não enumerar, a cada suspiro dado fora do compasso, todas as consequências que tal ato o traria mais tarde. Mas as coisas não eram assim, não era esse tipo de pessoa.

Não.

Era do tipo de pessoa que não se levantaria, e continuaria a remoer-se com as mágoas que não sabia como e a quem expor. E então, sabia bem, em seguida adormeceria tendo em sua mente que o amanhã sempre está por perto e que pode até – talvez, quem sabe? – ser um daqueles dias em que o sol brilha, e várias nuvens brancas flutuam no céu azul, e os pássaros cantam lindas canções...