sexta-feira, 18 de julho de 2008

Dança de Salão

Uma caixa de lenços. Uma caixa de lenços vazia. Foi tudo o que sobrou. De tudo. Uma caixa bem grandona, tamanho família, branca com florzinhas. Ela está vazia agora, e foi assim que as coisas acabaram.

Tudo começou quando ela me disse que não queria mais. Ela estava encostada no batente da porta do meu quarto, encarando a caixa de lenços como se quisesse queimá-la com a alma. Eu sentada na cama. A caixa ia fazendo "tec-tec" enquanto destacava a aba. As suas palavras horríveis e os meus "tec-tec". Era como uma música.
Ela terminou a sua frase enquanto, com muito esforço eu tirava o primeiro lenço da caixa. Tudo que se ouviu por um instante foi aquele barulho suave de quando se tira um lenço da caixa. Aquele barulho que parece uma onda. Uma chama cresceu em seu olhar.
 
Assoei meu nariz sem fazer barulho. Olhei para ela e disse "Por quê?". Seus olhos passaram a me encarar, mas com o mesmo fogo com que encaravam a caixa de lenço. Admito que fiquei com medo.
 
"Por que o quê?" A cara de surpresa que fazia era inédita. Ela realmente não sabia por que o quê.
"Como assim? Por que isso?" Peguei outro lenço.
"E você ainda pergunta!"
Eu sinceramente não achava nenhum absurdo querer saber por que, de uma hora para outra, ela exigia que eu parasse algo que eu não queria parar! Então eu disse isso para ela.
"Eu não vejo nenhum absurdo em querer saber por que" Peguei outro lenço.
"Você!" Seu dedo ossudo com a unha vermelha apontava em minha direção. Seus olhos queimavam com um fogo demoníaco. Ela guardou o dedo, respirou fundo e murmurou "não sabe de nada."
Aquilo me irritou muito. Quem ela pensava que era, para mandar em mim, não responder as minhas perguntas, ficar brava quando peço explicações e ainda brigar comigo! Só a minha mãe pode fazer isso. Tirei outro lenço da caixa.
"E você é incapaz."
"Do quê?" Seu olhar já era mais desafiador. Tinha os braços cruzados sobre a barriga, me olhava com raiva.
"De tudo! Você não consegue... Não sabe... Faz... Viu! Você é tão incapaz que espalha a sua incapacidade por onde vai, fazendo todos ao seu redor incapazes." Nem eu sabia mais o que estava tentando dizer, mas de acordo com a sua cara, o que saiu não foi bom. Usei outro lenço, e eles começavam a se amontoar do meu lado.
O que aconteceu depois ainda não me é claro. Houve uma longa sequência de palavrões, xingamentos, acenos, lágrimas, gritos e lenços usados.
Eu não entendi o que ela quis dizer com "E você então!" depois que listei todos os seus defeitos, contando-os nos dedos.
E eu me lembro que gritava. Muito. Não sei bem o que, mas bem alto. Ela também. Tentava gritar mais alto do que eu. Talvez vice-versa, mas não tenho certeza.
A grande gritaria acabou com um silêncio súbito. Ela encarava o teto, eu o chão. As duas limpavam o nariz vagarosamente com o lenço. As duas estavam mais leves agora, depois de terem gritado todas as mágoas de uma vida inteira.
"Eu não vou parar as aulas de dança de salão!"
Ela saiu e disse "então encontre uma nova melhor amiga."

Então usei a última folha de lenço de papel. E acabei com uma caixa de lenço. Vazia
(Ganhador do 3º lugar na Jornada Literária 2008 do Colégio Rainha da Paz, categoria Crônica)

Um comentário:

  1. Minha linda, acho que não preciso dizer isso, mas não quero que existam dúvidas: estou muito orgulhosa de você....beijoca,
    mamãe

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"Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um deles é burro"
Mário Quintana