terça-feira, 29 de julho de 2008

História de um João Inexistente

Eu sou João, e eu existo sim. Eu sei que é bem confusa essa história de que um cara que existe escreve uma história sobre alguém que não existe, sendo que esse alguém sou eu mesmo. Sem metáforas, eu não existo mesmo. Mas a história de como eu virei um inexistente em uma longa tarde de verão é simples, e pode ser facilmente contada.
(Alguns detalhes importantes para a minha inexistência são que eu tenho trinta e quatro anos e moro com a minha mãe. Não trabalho, já que a minha mãe me sustenta fazendo salgadinhos de festa para encomenda. Nunca pus o pé na rua, porque sempre tive preguiça e nem um pouco de curiosidade, e minha mãe nunca me forçou a sair de casa. Com isso pode-se concluir que não tenho amigos, e que fui educado em casa com um professor particular.
Tenho muita preguiça de fazer coisas que julgo desnecessárias, então não as faço. Por isso não conheço o chão embaixo do sofá , não abro a geladeira desde os meus cinco anos e não leio jornal.
Tenho manias estranhas e as pessoas me acham esquisito.)
Desde pequeno eu gosto muito de leite com chocolate. Eu sei que todas as crianças gostam, mas eu tenho uma relação especial com leite com chocolate. É mais do que apreciação, é uma paixão verdadeira, quase uma obsessão.
Para mim, leite com chocolate é mais do que uma bebida, mais do que uma refeição. É uma invenção divina, a água dos deuses. A mistura de leite integral com as duas colheres e meia de sopa de chocolate em pó feita dentro da caneca da minha falecida avó, mexida com uma colher de alumínio, com movimentos anti-horários apenas, que a minha mãe faz assim que eu toco o sininho de prata é tão harmoniosa que me faz lacrimejar! (Porém, se não for feito assim é só uma gororoba qualquer.)
Um dia eu acordei com a estranha vontade de abrir a geladeira - e foi aí que tudo começou. Assim que abri a porta pesada, me deparei com uma caixa de leite aberta, e nela estava escrito "Semi-desnatado". E ainda haviam mais oito caixas iguais, fechadas, quietas na prateleira de baixo. Meu coração quase parou.
Corri para o quarto, onde encontrei minha mãe consertando forros de almofadas. Contei do ocorrido e ela ficou mais assustada com o fato de que eu tinha aberto a geladeira do que com o que estava escrito na caixa de leite. Pelo menos foi o que ela me disse, acompanhados de "e é claro que está escrito 'semi-desnatado'. É o tipo de leite que eu compro desde que você começou a falar. Quem mandou ficar vinte e nove anos sem abrir a geladeira?"
Percebi que ela estava falando sério. Com um pouquinho de ironia, mas sério de verdade. Foi então que ouvi um pedaço de mim se soltar do meu corpo e cair no chão, quebrando-se em milhares pedacinhos. Parte de minha história morreu naquele momento. Como assim? Quer dizer que a minha bebida maravilhosa de leite integral com chocolate em pó na verdade era de leite semi-desnatado? Que nojo de mim mesmo.
Respirei fundo, segurei minhas lágrimas e decidi sair de casa (afinal, antes tarde do que nunca, né) e ir até a "loja da esquina", onde minha mãe costumava ir todas as semanas me comprar bala de morango.
Marchei para fora do quarto e pela primeira vez na minha triste vida eu passei pelo portão de entrada da minha casa. Devo confessar que tive um pouco de medo. Virei a direita e andei determinado até a esquina, mas tudo que encontrei lá foi uma casa parecida com a minha, e que não era a "loja da esquina".
Juro que ouvi outro pedaço da minha alma se quebrando, virando pó.
Quer dizer que a "loja da esquina" fica na esquina da esquerda! E em toda a minha vida eu imaginei que ela ficava na direita. Nos meu sonhos e fantasias minha mãe sempre virava a direita. O tom de voz que ela a usava para me contar sobre a "loja da esquina" me apontava à esquina da direita.
Mas, sem problema. Só mais uma coisa que me caracterizava como "João, o existente" que desapareceu, mas como já disse, sem problemas. É só me controlar bastante, que as lágrimas não caem dos meus olhos.
Cruzei o quarteirão, a procura da "esquina da esquerda" e da "loja da esquina", que aparentemente ficavam no mesmo lugar.
A "loja da esquina" era um lugar muito simpático. Um grande balcão, várias prateleiras com várias coisas estranhas e coloridas. Atrás do balcão havia um homem barrigudo, com algo que parecia um lápis atrás de sua orelha, que conversava com um magrinho mal-humorado que sentava em um banquinho de madeira do seu lado, com os braços cruzados e os olhos fixos no chão.
Me aproximei do balcão, me apresentei como João, falei que era filho da minha mãe e que gostaria de um saquinho de bala de morango. E por favor. O barrigudo e o magrinho se entre olharam e esboçaram um sorrisinho como se soubessem algo sobre mim que eu não sabia.
"Sim, eu sei quem é a sua mãe, mas nós não vendemos bala de morango". Com essa revelação não ouvi nada se quebrar. Na verdade, só fiquei confuso. Da onde vem a bala que eu venho comendo durante todos esses anos?
"Tem bala do que então?"
"Nós temos de framboesa, e é desse tipo que a sua mãe compra para você toda semana, desde os seus quatro anos." O mal-humorado me disse com desprezo na sua voz.
Então eu ouvi mais um pedaço da minha alma cair no chão e se despedaçar. E ao passar do dia ia ficando cada vez mais inexistente. E surpreso.
Quer dizer que por toda a minha vida comi bala de framboesa achando que era de morango, bebi leite semi-desnatado achando que era integral, virava direita ao invés da esquerda, acreditava em A quando era B! Basicamente, vivi trinta e quatro anos de mentiras! E depois de tudo, o que me caracterizava como João... Simplesmente não existe.
Voltei para casa comendo minhas balas de framboesa que eu comprei na "loja da esquina da esquerda" pronto para enfrentar a minha mãe. Estava pronto para brigar com ela! Afinal, como se pode dizer para uma criança de quatro anos que ela não precisa ir para a escola se está com medo dos meninos - mais novos - que roubaram o lanche dela.
Ou então concordar com uma criança que não quer mais sair da própria casa, porque ficou traumatizada quando pisou no cocô de cachorro que não estava fazendo nenhum mal a ninguém.
Bati o portão da entrada, entrei batendo o pé dentro de casa. Abri a porta do quarto da minha mãe com toda a vontade que tive. Ela estava sentada na cadeira perto da janela, bordando. Parecida tão inofensiva.
Amoleci um pouco. Quase fiquei quieto, mas lembrei da pessoa que aquela mulher havia criado e que não existia mais. Lembrei de como eu tinha acabado de descobrir como ela era malvada.
Então eu gritei com ela.

Fui dormir naquela noite sabendo que abraço não mata e que sou adotado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

"Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um deles é burro"
Mário Quintana