sábado, 26 de julho de 2008

O gato, o rato e a morte

Enquanto encarava os azulejos brancos, mas encardidos da parede em minha frente, pensava cada vez mais sobre Estella. Estava naquela posição há algum tempo e a cadeira de plástico rangia toda vez que batia o pé no chão Já era conhecida lá no hospital. Eu era a visitante do quarto 134, que aparecia todos os sábados vinte minutos antes do horário de visitas começar, só para poder sentar na mesma cadeira, na mesma posição, ouvir os mesmos barulhos e encarar a mesma parede suja.

Estella era paciente terminal já há algum tempo. A moribunda mais insistente que já conheci. Tinha um desejo incontrolável pela vida, e nunca desistia do sonho que, um dia, ia por os pés na rua de novo, mesmo sabendo que só vivia por estar ligada a máquinas. Estella era uma moça jovem, não merecia estar naquela posição, mas já estávamos conformados com a idéia.

Entrei no quarto 134 e lá estava ela. Encarando o teto, repetindo algo como "meu gato adoraria pegar essas andorinhas verdes". Sentei- me na poltrona, como de costume.

"Já fiquei sabendo" falei depois de algum tempo observando-a "finalmente..."
"É" ela respondeu com naturalidade sem tirar os olhos do teto "não aguento mais esses bichos daqui. Eles querem que eu vá embora, ficam me rodeando. Eu já estou aqui há muito tempo mesmo. Ficam me trazendo contratos para assinar, mas eu tinha prometido a mim mesma que só assinaria quando me trouxessem um que não estivesse amassado. Mas eu desisti. Ia demorar muito até o tal contrato vir, eles não tomam cuidado. Andorinhas! Contei-te do rato que apareceu em casa?"disse mudando de assunto.
"Não, que rato?"
"Entrou um rato na minha casa, mas ninguém conseguiu matar, nem mesmo Fofucho"

Depois disso veio um silêncio constrangedor, longo, denso e de um modo muito estranho, confortante. Após muito tempo Estella suspirou.

"Vão fazê-lo amanhã. Num domingo, meu dia favorito. Fui eu que escolhi a data."
"Legal, eu acho" estava sem respostas. Não sabia o que falar para alguém prestes a se despedir do mundo.

"É. Isso não é vida. Fiquei tempo demais sonhando." afirmou sem muita certeza. Eu queria concordar, mas achei melhor não. Então não disse nada. "Me faz um favor?" disse depois de uma longa pausa, "faça essas coisas para mim? Mas só depois da uma hora da tarde de amanhã." Pegou um papelzinho que estava embaixo do travesseiro e me entregou. Eu não disse nada, e só olhei o papel alguns segundo depois. "Não precisa me responder agora."

Ficamos lá por muito tempo. Conversamos bastante e percebi que as pessoas não mudam mesmo na véspera de suas mortes. Contou-me de Fofucho seu gato, o amor de sua vida e de como ela estava infeliz, sozinha. Assistimos a chuva cair na janela silenciosamente e segurei a sua mão, até que ela adormeceu.

Peguei um papel e uma caneta na minha bolsa e escrevi a resposta para o seu favor. "Adoto seu gato, mato seu rato e lamento muito a sua morte". Dei-lhe um beijo na testa, pus o papel perto do travesseiro. "Vou sentir falta de vir aqui te visitar. Meu sábados não vão mais ter sentido" era a única coisa que conseguia pensar. Saí do quarto, fechei a porta e não olhei mais para trás.

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"Quando alguém pergunta a um autor o que este quis dizer, é porque um deles é burro"
Mário Quintana